Entregar-nos também significa reconhecer as qualidades cruas, rudes, desajeitadas e chocantes do nosso ego, reconhecê-las e renunciar a elas. Geralmente, achamos muito difícil mostrar e entregar as qualidades nuas e cruas do nosso ego. Embora possamos odiar-nos, ao mesmo tempo, vemos neste auto-ódio uma espécie de serventia. Apesar de não gostarmos do que somos e acharmos penosa nossa auto-condenação, ainda assim não conseguimos abrir mão deste fato completamente. Se começamos a renunciar nossa autocrítica, podemos sentir que estamos perdendo a nossa ocupação, como se alguém estivesse tirando o nosso emprego. Não teríamos nenhuns outros afazeres, se tivéssemos que renunciar a tudo; não haveria coisa alguma a que nos agarrar. A auto-avaliação e a autocrítica são, basicamente, tendências neuróticas que decorrem do fato de não termos suficiente confiança em nós mesmos, "confiança" no sentido de ver o que somos, saber o que somos, saber que podemos permitir-nos uma abertura. Podemos permitir-nos a entrega dessa qualidade neurótica nua e crua do eu, e deixar para trás o fascínio, deixar para trás as idéias preconcebidas. (...)
A decepção é o melhor veículo que podemos usar no caminho do dharma. Ela não confirma a existência do nosso ego nem de seus sonhos. Entretanto, se estamos envolvidos com materialismo espiritual, se encaramos a espiritualidade como parte de nosso acúmulo de aprendizado e virtudes, se a espiritualidade se transforma num meio de nos formar a nós mesmos, o curso de todo o processo de entrega está completamente distorcido. Se consideramos a espiritualidade um meio de adquirirmos conforto, toda vez que tivermos uma experiência desagradável, uma decepção, tentaremos racionalizá-la: "É claro que isto deve ser um gesto de sabedoria da parte do guru, pois eu sei, tenho certeza de que ele não faz nada que seja prejudicial. Guruji é um ser perfeito e tudo o que faz está certo. Tudo o que faz, não importa o quê, Guruji faz por mim, porque está do meu lado. Por isso estou em condições de me abrir. Posso entregar-me com segurança. Sei que estou seguindo pelo caminho certo." Há qualquer coisa não muito certa numa atitude assim. Na melhor das hipóteses, ela é simplista e? ingênua. Ficamos cativados pelo aspecto impressionante, inspirador, digno e pitoresco de "Guruji". Não ousamos ter um outro ângulo de visão. Desenvolvemos a convicção de que tudo quanto vivenciamos faz parte do nosso desenvolvimento espiritual. "Eu consegui. Eu vivenciei a experiência. Sou uma pessoa que se fez por si mesma e sei quase tudo, porque li livros e eles confirmam minhas crenças, minhas idéias, que eu tenho razão. Tudo coincide."
Podemos conter-nos ainda de outra forma: não nos entregando de fato porque nos julgamos pessoas muito bemeducadas, sofisticadas e dignas. "Por certo que não podemos entregar-nos a esta realidade prosaica, vulgar e suja". Temos a impressão de que cada passo do caminho que percorremos deveria ser uma pétala de lótus e criamos uma lógica que concordantemente interpreta tudo o que nos aconteça. Se caímos, criamos um pouso macio para impedir qualquer choque brusco. Mas, a entrega não inclui preparativos para um pouso suave; significa simplesmente cair em solo duro, comum, em terreno agreste, cheio de pedras. Quando nos abrimos, caímos no que realmente existe.
Tradicionalmente, a entrega é simbolizada por práticas como a prostração, que é o ato de cair ao chão num gesto de renúncia. Ao mesmo tempo nos abrimos psicologicamente e nos entregamos completamente ao nos identificarmos com o mais humilde dos humildes, reconhecendo nossa qualidade crua e rude. Não há nada que temamos perder quando nos identificamos com o mais baixo dos baixos. Ao fazê-lo, preparamo-nos para ser um recipiente vazio, pronto para receber os ensinamentos.
Na tradição budista existe uma fórmula básica: "Refugio-me no Buda, refugio-me no dharma, refugio-me no sangha." Refugio-me no Buda como exemplo de entrega, o exemplo do reconhecimento da negatividade como parte da nossa constituição e de nossa abertura à ela. Refugio-me no dharma — dharma, a "lei da existência", a vida como ela é. Estou disposto a abrir os olhos e enxergar as circunstâncias da vida exatamente como elas são. Não estou inclinado a vê-las como espirituais ou místicas, mas quero ver as situações da vida como elas realmente são. Refugio-me no sangha. "Sangha" significa "comunidade de pessoas no caminho espiritual", "companheiros". Estou disposto a compartilhar a experiência de toda a vida que nos cerca com os meus companheiros de peregrinação, meus companheiros de busca, os que caminham comigo; mas não estou disposto a encostar-me neles a fim de obter apoio. Minha vontade é apenas caminhar com eles. Há uma tendência muito perigosa de nos apoiarmos uns nos outros ao percorrer o caminho. Se os membros de um grupo se firmam uns nos outros, todos cairão se, por acaso, um deles cair. Por isso mesmo não nos apoiamos em uma outra pessoa. Limitamo-nos a caminhar uns com os outros, lado a lado, ombro a ombro, a trabalhar com os outros, a ir com eles. Essa atitude com relação à entrega, essa noção de refúgio é muito profunda. (...)
Entregar-se não significa ser inferior e tolo, nem querer ser elevado e profundo. Não tem nada a ver com níveis e avaliações. Ao invés disso, entregamo-nos porque gostaríamos de nos comunicar com o mundo tal "como ele é". Não precisamos nos classificar como cultos ou como ignorantes. Sabemos onde estamos e, portanto, fazemos o gesto de entrega, da abertura, que quer dizer comunicação, ligação, comunicação direta com o objeto da nossa entrega. Não nos constrangemos com nossa rica coleção de qualidades cruas, rudes, belas e puras. Apresentamos tudo ao objeto da nossa entrega. O ato básico da entrega não implica a adoração de um poder externo. Antes disso, significa trabalhar junto com a inspiração, de modo que nos tomamos um recipiente aberto no qual o conhecimento pode ser vertido.
Dessa forma, a abertura e a entrega constituem a preparação necessária para o trabalho com um amigo espiritual. Nós reconhecemos nossa riqueza fundamental em vez de lastimar a pobreza imaginária do nosso ser. Sabemos que somos dignos de receber os ensinamentos, dignos de relacionar-nos com a riqueza das oportunidades de aprender.
A decepção é o melhor veículo que podemos usar no caminho do dharma. Ela não confirma a existência do nosso ego nem de seus sonhos. Entretanto, se estamos envolvidos com materialismo espiritual, se encaramos a espiritualidade como parte de nosso acúmulo de aprendizado e virtudes, se a espiritualidade se transforma num meio de nos formar a nós mesmos, o curso de todo o processo de entrega está completamente distorcido. Se consideramos a espiritualidade um meio de adquirirmos conforto, toda vez que tivermos uma experiência desagradável, uma decepção, tentaremos racionalizá-la: "É claro que isto deve ser um gesto de sabedoria da parte do guru, pois eu sei, tenho certeza de que ele não faz nada que seja prejudicial. Guruji é um ser perfeito e tudo o que faz está certo. Tudo o que faz, não importa o quê, Guruji faz por mim, porque está do meu lado. Por isso estou em condições de me abrir. Posso entregar-me com segurança. Sei que estou seguindo pelo caminho certo." Há qualquer coisa não muito certa numa atitude assim. Na melhor das hipóteses, ela é simplista e? ingênua. Ficamos cativados pelo aspecto impressionante, inspirador, digno e pitoresco de "Guruji". Não ousamos ter um outro ângulo de visão. Desenvolvemos a convicção de que tudo quanto vivenciamos faz parte do nosso desenvolvimento espiritual. "Eu consegui. Eu vivenciei a experiência. Sou uma pessoa que se fez por si mesma e sei quase tudo, porque li livros e eles confirmam minhas crenças, minhas idéias, que eu tenho razão. Tudo coincide."
Podemos conter-nos ainda de outra forma: não nos entregando de fato porque nos julgamos pessoas muito bemeducadas, sofisticadas e dignas. "Por certo que não podemos entregar-nos a esta realidade prosaica, vulgar e suja". Temos a impressão de que cada passo do caminho que percorremos deveria ser uma pétala de lótus e criamos uma lógica que concordantemente interpreta tudo o que nos aconteça. Se caímos, criamos um pouso macio para impedir qualquer choque brusco. Mas, a entrega não inclui preparativos para um pouso suave; significa simplesmente cair em solo duro, comum, em terreno agreste, cheio de pedras. Quando nos abrimos, caímos no que realmente existe.
Tradicionalmente, a entrega é simbolizada por práticas como a prostração, que é o ato de cair ao chão num gesto de renúncia. Ao mesmo tempo nos abrimos psicologicamente e nos entregamos completamente ao nos identificarmos com o mais humilde dos humildes, reconhecendo nossa qualidade crua e rude. Não há nada que temamos perder quando nos identificamos com o mais baixo dos baixos. Ao fazê-lo, preparamo-nos para ser um recipiente vazio, pronto para receber os ensinamentos.
Na tradição budista existe uma fórmula básica: "Refugio-me no Buda, refugio-me no dharma, refugio-me no sangha." Refugio-me no Buda como exemplo de entrega, o exemplo do reconhecimento da negatividade como parte da nossa constituição e de nossa abertura à ela. Refugio-me no dharma — dharma, a "lei da existência", a vida como ela é. Estou disposto a abrir os olhos e enxergar as circunstâncias da vida exatamente como elas são. Não estou inclinado a vê-las como espirituais ou místicas, mas quero ver as situações da vida como elas realmente são. Refugio-me no sangha. "Sangha" significa "comunidade de pessoas no caminho espiritual", "companheiros". Estou disposto a compartilhar a experiência de toda a vida que nos cerca com os meus companheiros de peregrinação, meus companheiros de busca, os que caminham comigo; mas não estou disposto a encostar-me neles a fim de obter apoio. Minha vontade é apenas caminhar com eles. Há uma tendência muito perigosa de nos apoiarmos uns nos outros ao percorrer o caminho. Se os membros de um grupo se firmam uns nos outros, todos cairão se, por acaso, um deles cair. Por isso mesmo não nos apoiamos em uma outra pessoa. Limitamo-nos a caminhar uns com os outros, lado a lado, ombro a ombro, a trabalhar com os outros, a ir com eles. Essa atitude com relação à entrega, essa noção de refúgio é muito profunda. (...)
Entregar-se não significa ser inferior e tolo, nem querer ser elevado e profundo. Não tem nada a ver com níveis e avaliações. Ao invés disso, entregamo-nos porque gostaríamos de nos comunicar com o mundo tal "como ele é". Não precisamos nos classificar como cultos ou como ignorantes. Sabemos onde estamos e, portanto, fazemos o gesto de entrega, da abertura, que quer dizer comunicação, ligação, comunicação direta com o objeto da nossa entrega. Não nos constrangemos com nossa rica coleção de qualidades cruas, rudes, belas e puras. Apresentamos tudo ao objeto da nossa entrega. O ato básico da entrega não implica a adoração de um poder externo. Antes disso, significa trabalhar junto com a inspiração, de modo que nos tomamos um recipiente aberto no qual o conhecimento pode ser vertido.
Dessa forma, a abertura e a entrega constituem a preparação necessária para o trabalho com um amigo espiritual. Nós reconhecemos nossa riqueza fundamental em vez de lastimar a pobreza imaginária do nosso ser. Sabemos que somos dignos de receber os ensinamentos, dignos de relacionar-nos com a riqueza das oportunidades de aprender.
(Retirado de "Além do Materialismo Espiritual"; de Chögyam Trungpa)
2 comentários:
olá, faço os blogs Enteógenos e o Samsara. Venho acompanhando o seu tb, parabens!
Acabei de colocar um texto que deve te interessar:
Enteógenos são úteis na prática do budismo?
abs!
Olá, vim conferir o seu blog. Está bem interessante, parabéns! Saudações. Antonio Vaszken.
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