"O místico, dotado de talentos inatos..., e seguindo... a instrução de um mestre, entra na água e descobre que sabe nadar; o esquizofrênico, por sua vez, despreparado, sem orientação e sem dotes, caiu nela, ou mergulhou voluntariamente, e está se afogando."
Joseph Campbell, Myths to Live By
Joseph Campbell, Myths to Live By
Sentimentos de unidade com todo o universo. Visões e imagens de épocas e locais distantes. Sensações de vibrantes correntes de energia percorrendo o corpo, acompanhadas de espasmos e de violentos tremores. Visões de divindades, semideuses e demônios. Vividos vislumbres de luzes brilhantes e das cores do arco-íris. Temores de insanidade, e até de morte, iminente.
Quem passar por esses fenômenos físicos e mentais extremos é rotulado imediatamente de psicótico pela maioria dos ocidentais de hoje. Contudo, um número crescente de pessoas parece estar tendo experiências incomuns semelhantes às descritas acima e, em vez de se perderem sem esperança na insanidade, esses indivíduos costumam sair desses estados mentais extraordinários com um sentido cada vez maior de bem-estar e com um nível superior de funcionamento na vida diária. Em muitos casos, problemas emocionais, mentais e físicos de longa data são curados nesse processo.
Encontramos muitos paralelos desses incidentes nas histórias de vidas de santos, de iogues, místicos e xamãs. Com efeito, a literatura e as tradições religiosas de todo o mundo validam o poder de cura e de transformação desses estados incomuns para as pessoas que passam por eles. Por que, então, as pessoas que têm essas experiências no mundo de hoje são consideradas, quase todas, mentalmente doentes?
Embora haja muitas exceções individuais, a psicologia e a psiquiatria dominantes não costumam distinguir entre misticismo e doença mental. Esses campos não reconhecem em termos oficiais que as grandes tradições espirituais que se dedicam há milênios ao estudo sistemático da consciência humana têm algo a oferecer. Por isso, os conceitos e práticas do budismo, do hinduísmo, do cristianismo, do sufismo e de outras tradições místicas são ignorados e descartados indiscriminadamente.
Neste ensaio, vamos examinar a idéia de que muitos episódios de estados mentais incomuns, mesmo os dramáticos e de proporções psicóticas, não são necessariamente sintomas de doenças no sentido médico. Vemo-los como crises da evolução da consciência ou "emergências espirituais", comparáveis aos estados descritos pelas várias tradições místicas do mundo.
Antes de discutir em termos mais específicos o conceito de emergência espiritual, analisemos mais de perto a relação entre psicose, doença mental e misticismo e os fatos históricos que resultaram na rejeição das experiências místicas e espirituais clássicas como sintomas de doença mental por parte da ciência e da psiquiatria moderna.
A visão de mundo criada pela ciência ocidental tradicional, e que domina a nossa cultura, é, em sua forma mais rigorosa, incompatível com toda noção de espiritualidade. Num universo em que somente o palpável, o material e o mensurável são reais, todas as modalidades de atividades religiosas e místicas são consideradas reflexo da ignorância, da superstição e da irracionalidade ou imaturidade emocional. Por conseguinte, interpretam-se as experiências diretas de realidades espirituais como "episódios psicóticos" - manifestações de doença mental.
Nossas experiências e observações pessoais ao longo de anos de envolvimento em várias formas de psicoterapia experiencial profunda nos levaram a crer ser importante rever essa situação na psiquiatria e em nossa visão de mundo em geral, reavaliando-a à luz de evidências da história pregressa e recente. Um reexame radical do pensamento sobre o misticismo e a psicose há muito tem sido adiado. Uma clara diferenciação entre esses dois fenômenos tem amplas conseqüências práticas para as pessoas que passam por estados de consciência incomuns, especialmente os de ênfase espiritual. É importante reconhecer as emergências espirituais e tratá-las de modo apropriado, devido ao seu enorme potencial positivo de crescimento e de cura pessoais, que em geral seria suprimido por uma abordagem insensível e por uma medicação de rotina indiscriminada.
O grupo de desordens mentais conhecido como psicoses constitui um grande desafio e um enigma para a psiquiatria e a psicologia ocidentais. Essas condições se caracterizam por um profundo distúrbio da capacidade de perceber o mundo em termos normais; de pensar e de responder, em termos emocionais, de uma maneira cultural e socialmente aceitável; e de comportar-se e comunicar-se de modo apropriado.
Para algumas dessas desordens, a ciência moderna descobriu modificações anatômicas, fisiológicas e bioquímicas de base no cérebro e em outras partes do organismo. Esse subgrupo, denominado psicoses orgânicas, pertence inquestionavelmente ao domínio médico. Mas não se descobriram explicações médicas para muitos outros estados psicóticos, apesar dos esforços concentrados de gerações de pesquisadores de vários campos. Mesmo com a falta geral de resultados na busca de causas médicas específicas, as chamadas psicoses funcionais costumam ser incluídas na categoria de doenças mentais de causa desconhecida. Trata-se do subgrupo de psicoses que nos interessa aqui.
Diante da ausência de um claro consenso sobre as causas das psicoses funcionais, seria mais adequado e honesto reconhecer nossa completa ignorância quanto à sua origem e sua natureza, e só usar o termo doença para as condições passíveis de ter descoberta uma base física específica. Assim, podemos abrir a porta para novas abordagens de, ao menos, algumas psicoses funcionais, criando novas perspectivas que diferem, teórica e praticamente, da concepção médica da doença. Já foram desenvolvidas alternativas, em particular no âmbito das chamadas psicologias profundas. Existem várias teorias psicológicas e estratégias psicoterapêuticas inspiradas pelo trabalho pioneiro de Sigmund Freud.
Embora as abordagens da psicologia profunda sejam discutidas e ensinadas nos círculos acadêmicos, a compreensão e o tratamento das psicoses funcionais na psiquiatria dominante estão dominados, por uma variedade de razões, pelo pensamento médico. Em termos históricos, a psiquiatria conseguiu estabelecer-se com firmeza como disciplina médica. Descobriu-se uma base orgânica para certos estados psicóticos e, em alguns casos, até tratamentos efetivos para eles. Além disso, sintomas de condições psicóticas de origem desconhecida foram controlados por meio de tranqüilizantes, antidepressivos, sedativos e soporíferos. Parecia lógico, portanto, estender a trajetória e esperar sucesso ao longo das mesmas linhas em desordens para as quais ainda não foram descobertas causas nem tratamentos.
Há outros fatos persuasivos em favor da perspectiva médica ou psiquiátrica. A psiquiatria atribui estados e comportamentos psicóticos a condições físicas e fisiológicas, enquanto as psicologias profundas tentam descobrir as causas dos problemas mentais em eventos e circunstâncias da vida do paciente, em geral ocorrências da infância. Por conseguinte, a psicologia tradicional limita as fontes dos conteúdos da mente a aspectos observáveis da história pessoal do cliente. A isso chamamos de "modelo biográfico" da psicose. Os estados mentais e comportamentos psicóticos para os quais não se pode encontrar causas na biografia pessoal serviriam, portanto, para fornecer evidências favoráveis ao modelo médico.
Com efeito, há significativos aspectos de muitas psicoses que não podem ser explicados por meio do método psicológico de descobertas da origem de todas as condições mentais na história de vida do paciente. Alguns deles envolvem certas emoções e sensações físicas extremas que não se podem compreender em termos da história individual da infância ou de eventos posteriores. Incluem-se aqui, por exemplo, visões e experiências de ser engolfado pelo universo, de torturas diabólicas, de desintegração da personalidade e até de destruição do mundo. De igual modo, sentimentos de culpa abismais, a sensação de danação eterna ou impulsos agressivos indiscriminados ou incontroláveis não podem ser associados, em muitos casos, com eventos ou condições específicas da vida do paciente. Assim sendo, poderíamos facilmente supor que esses elementos estranhos presentes na psique devem ser uma decorrência de processos patológicos orgânicos que afetam direta ou indiretamente o cérebro.
Há outras espécies de experiências problemáticas da perspectiva biográfica, não apenas por causa de sua intensidade como em função de sua natureza. Experiências com divindades e demônios, com heróis e ambientes místicos ou com regiões celestiais ou infernais não têm lugar lógico no mundo concebido pela ciência ocidental. Por isso, parece evidente sugerir, como o faz o ponto de vista médico, que elas devem ser produto de algum processo físico patológico de origem desconhecida. O caráter místico de muitas experiências de estados de consciência incomuns as inclui automaticamente na categoria de enfermidades, visto que a espiritualidade não é considerada uma dimensão legítima no universo material excludente da ciência tradicional.
Contudo, recentes desenvolvimentos na área psicológica começaram a sugerir, para essas ocorrências extraordinárias, fontes que não se enquadram na patologia médica nem da história de vida pessoal. Historicamente, a primeira ruptura nesse sentido foi a obra do psiquiatra suíço C. G. Jung. Jung expandiu em muito o modelo biográfico, ao introduzir o conceito de inconsciente coletivo. Por meio-de uma cuidadosa análise de sua própria vida onírica, dos sonhos dos seus clientes e das alucinações, fantasias ou delírios dos psicóticos, ele descobriu que a psique humana tem acesso a imagens e motivos de real natureza universal. Esses elementos podem ser encontrados na mitologia, no folclore e na arte de culturas distribuídas amplamente, não apenas pelo globo, mas ao longo da história da humanidade.
Esses arquétipos, como Jung os denominou, aparecem com surpreendente regularidade mesmo em indivíduos cuja história de vida e cuja educação carecem de exposição direta às várias manifestações culturais e históricas. Essa observação levou-o à conclusão de que há - além do inconsciente individual - um inconsciente racial ou coletivo comum à humanidade. Para ele, a religião e a mitologia comparadas eram fontes inestimáveis de informação sobre esses aspectos coletivos do inconsciente. No modelo junguiano, muitas experiências que não fazem sentido como derivativos de eventos biográficos, tais como visões de divindades e demônios, podem ser consideradas manifestações de conteúdos do inconsciente coletivo.
Embora conhecidas há muitas décadas, as idéias de Jung de início não tiveram influência significativa fora de estreitos círculos de seguidores dedicados. Elas estavam muito além do seu tempo e tiveram de esperar um ímpeto adicional para se destacarem. Essa situação começou a mudar nos anos 60, época de um grande renascimento do interesse pelos limites mais amplos da consciência humana. Essa era de exploração interior se iniciou com a experimentação clínica com drogas psicodélicas entre profissionais e com a exposição pessoal de uma parcela da população leiga, que por um certo período passou a ser conhecida como contracultura, a essas drogas. Prosseguiu com uma avalancha de técnicas experienciais de psicoterapia e de práticas espirituais de toda espécie, da terapia da Gestalt à meditação transcendental, entre terapeutas e leigos nos anos 70 e 80.
À medida que muitas pessoas passaram a ter experiências com os tipos de imagens e símbolos que Jung atribuía ao inconsciente coletivo, bem como a viver episódios de natureza mística clássica, essa onda forneceu um forte apoio as idéias junguianas e uma poderosa validação das tradições místicas do mundo, oriental e ocidental. Nessa época, ficou evidente para muitos praticantes dessas explorações ser necessário um novo modelo de psique cujos elementos importantes incluiriam não apenas a dimensão biográfica freudiana como o inconsciente coletivo e a espiritualidade junguiana.
Quando se pensa na mente em termos tão ampliados, os conteúdos das experiências que ocorrem durante vários estados de consciência extraordinários não são vistas como produtos casuais e arbitrários de um funcionamento cerebral alterado. Eles são, em vez disso, manifestações dos recessos remotos da psique humana a que não costumamos ter acesso. E a vinda desse material inconsciente à superfície pode ser, na verdade, curativa e transformadora, desde que ocorra nas circunstâncias corretas. Inúmeras disciplinas espirituais e tradições místicas, do xamanismo ao zen, representam ricos repositórios de valioso conhecimento sobre esses domínios mais profundos da mente. Sabe-se há séculos que muitos episódios dramáticos e difíceis podem ocorrer durante a prática espiritual e que o caminho para a iluminação pode ser doloroso e tempestuoso.
Assim, a luz lançada pela psicologia profunda e dos antigos legados espirituais fornece a base para uma nova compreensão de alguns estados psicóticos para os quais não podem ser descobertas causas biológicas. Os desafios à psiquiatria moderna apresentados por essas duas escolas de conhecimento nos revelam as raízes da idéia de emergência espiritual, conceito que ora examinaremos com maiores detalhes.
"Retirado de: Emergência Espiritual; de Stanislav e Christina Grof"
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