Texto de Bernardo Souza
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Na construção da obra de Jung, percebemos a constante presença dos aspectos masculinos e femininos da psique. Além dos conceitos de anima e animus, o autor apresenta uma série de interpretações embasadas na mitologia, como o hierós gamos (casamento sagrado) e a sizígia (motivo da conjunção). Também merecem destaque os estudos dos manuscritos alquímicos, a partir dos quais Jung problematiza a coniunctio (conjunção dos opostos) que, em diversas de suas representações, caracterizam o masculino e o feminino como as imagens de Sol e Lua, Rei e Rainha, para citar alguns exemplos.
O feminino, em sua essência, representa algo de primordial, estando ligado ao estado inconsciente. Portanto, o feminino e o inconsciente são anteriores e dão origem à consciência. Comumente, o masculino é associado ao estado de consciência, estando contido no inconsciente, ao mesmo tempo em que se opõe a ele. Assim como o feminino fica vinculado ao inconsciente e o masculino ao consciente, também ficam o materno e o paterno, que são respectivamente referidos a estas duas instâncias. O poder da inconsciência feminina/materna e seus mistérios provocaram medo nos homens que não os compreendiam. Por isso, ocorre uma reação, em que cabe ao pai organizar em alguma medida a inconsciência materna.
No entendimento da Psicologia Junguiana, os mitos estão intimamente relacionados aos arquétipos, ao passo que representam situações e personagens tipicamente humanos. Jung chega a incorporar o termo mitologema para designar os núcleos míticos que se repetem na experiência humana. Através do estudo dos mitos, podemos compreender a estrutura dos seres humanos do passado e do presente. Em muitas das narrativas míticas, são mostrados os papéis femininos, masculinos e suas nuances. Os deuses e deusas primordiais com suas proles estão envolvidos em diversas alegorias que procuram explicar as origens das pessoas e do mundo e suas inter-relações. Observamos que os temas dos relacionamentos familiares, paternidade e maternidade ganham destaque na maior parte dos grupos míticos.
Dois dos arquétipos mais importantes para o início do desenvolvimento humano e para o processo de formação do ego são os arquétipos da Grande Mãe e do Pai. O arquétipo do Pai está incluído em um grupo de arquétipos masculinos que abarcam, por exemplo, o animus, o Velho Sábio, o herói e o Trickster. Desta forma, é importante destacar que os arquétipos masculinos muitas vezes se confundem com o arquétipo do pai. Nas propostas teóricas de autores pós-junguianos, existem variadas formulações sobre a temática destes arquétipos, sendo ora considerados separadamente, ora em conjunto, como se fossem apenas um. Além disso, comumente são considerados como opositivos e complementares aos arquétipos femininos.
O arquétipo do pai em comparação com o arquétipo da mãe foi menos trabalhado no decorrer da obra junguiana. Os escritos sobre este tópico estão dispersos em alguns artigos, principalmente nos trabalhos sobre o desenvolvimento da criança e sobre o imaginário alquímico. Essa menor atenção dispensada a uma formalização mais específica ao arquétipo do pai, não diminui a importância dos arquétipos masculinos para Jung. Em seus textos, ele privilegiou especialmente os arquétipos do herói e do Velho Sábio, que estão intimamente relacionados com o lado positivo do arquétipo paterno.
Antes mesmo de existir a figura concreta e humana do pai, a ideia de pai já estava presente no inconsciente coletivo. A tomada de consciência da paternidade foi um longo processo que acompanhou o desenvolvimento psíquico da humanidade. De certa maneira, havia um pai abstrato já operante, o que pode ser observado pela organização e pelo funcionamento de algumas civilizações antigas.
O pai se origina no limite entre a natureza e a cultura e só pode surgir na civilização pelo abandono de um estado mais primordial, animal, ao qual os homens estavam submetidos. A compreensão do homem como pai só foi possível com o aumento da capacidade de raciocínio ao longo do desenvolvimento da espécie humana. O pai é uma construção que precisa ter intencionalidade, vontade, autoimposição e ser programada. A paternidade precisa ser construída e descoberta não apenas no ato do nascimento, mas ao longo da vida na relação que irá se estabelecer entre pai e filho.
No artigo “A importância do pai no destino do indivíduo”, Jung, atribui aos pais uma participação fundamental na vida e estruturação dos filhos, bem como o poder de guiar a criança a um destino mais elevado. Durante o crescimento, ocorre um embate entre a atitude infantil e a consciência emergente, ficando a influência das figuras parentais reprimida no inconsciente. A situação primitiva infantil é capaz, portanto, de influenciar inconscientemente a consciência.
Jung observou que, em sua época, as pesquisas constatavam o predomínio da influência do caráter paterno na família durante centenas de anos, e que o mesmo não acontecia com as mães. Portanto, se tal fato se perpetuava no campo da hereditariedade, também era esperado que ocorressem influências psicológicas que emanassem do pai. Dessa perspectiva a criança possuiria um sistema herdado capaz de antecipar a existência dos pais e de sua futura influência sobre ela. Assim, nota-se que por trás do pai existe o arquétipo do pai, no qual reside o segredo do poder paterno.
A imagem do pai faz parte do acervo presente na psique dos seres humanos, mas não é necessariamente originada em sua experiência pessoal de vida. Esta foi herdada dos antepassados, e fica inconsciente até que algum evento a ative. O poder autônomo do complexo advém do arquétipo, razão pela qual o senso comum muitas vezes compara a figura do pai com um deus ou um demônio. O fascínio exercido pela figura do pai viria da força arquetípica e não do pai pessoal. O arquétipo atua como um amplificador, que aumenta os efeitos que emanam do pai. O ser humano é controlado e influenciado pelo poder dos arquétipos. Alguns conseguem resistir a esta compulsão, mas outros sucumbem a ela. Assim sendo, um homem possuído pelo arquétipo do pai é capaz de exercer uma influência dominadora sobre a criança por meio da sugestão. O pai pode causar o mesmo tipo de comportamento inconsciente em seu filho, de forma que este também sofra a influência externa do arquétipo sem ser capaz de fazer qualquer tipo de oposição interna e esta força.
O arquétipo masculino é caracterizado por Jung como estando ligado ao desenvolvimento da consciência, tanto nos homens quanto nas mulheres. O arquétipo feminino, em contrapartida, é muitas vezes associado ao inconsciente. Ocorre uma importante polarização entre o arquétipo do pai, que tem como características ser intrusivo, penetrante e mental e o arquétipo da Grande Mãe que é tido como estático, material e autocontido. De acordo com as ideias expressas na Teogonia de Hesíodo, que apresenta a origem e evolução dos deuses da mitologia grega, há uma relação de hierarquia e conflito entre pais e filhos, que é ilustrada por três gerações de deuses encabeçadas por Urano, Cronos e Zeus, em que o filho sempre destrona o pai e toma seu lugar. Tendo como referência este texto, entendemos que o arquétipo masculino está submetido à temporalidade, que muitas vezes encontra-se associado à cultura e à tradição. Em suma, o masculino, se expressando pelo arquétipo do pai ou pelo animus, possui as características de ser criativo e transformativo, sendo chamado por Jung de logos spermatikós.
À nível pessoal, a transição do arquétipo da mãe para o do pai é considerada bastante significativa. Nos primeiros meses de vida, a criança está ligada ao solo, no qual engatinha, e, portanto, relaciona-se estreitamente com a mãe. Quando passa a ficar de pé, vê o mundo de outra perspectiva, a vertical, e ao passar da horizontalidade para a verticalidade começa a operar o arquétipo do pai.
Com a evolução da consciência, a importância da personalidade parental é reduzida, tanto na história da humanidade quanto na vida individual. No âmbito social, no lugar do pai aparece a sociedade dos homens, do mesmo modo que, no lugar da mãe surgiu a família. Jung considera estes fatos como uma ampliação que já estaria contida na imagem primitiva dos pais. São apontadas no livro Civilização em Transição, algumas dessas imagens de mãe e pai:
A mãe, que providencia calor, proteção e alimento é também a lareira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta. A mãe é também a roça fértil e seu filho é o grão divino, o irmão e amigo dos homens. A mãe é vaca leiteira e rebanho. O pai anda por aí, fala com os outros homens, caça, viaja, faz guerra, espalha seu mau humor qual tempestade e, sem muito refletir, muda a situação toda num piscar de olhos. Ele é a guerra e a arma, a causa de todas as mudanças. É o touro provocado para a violência ou para a preguiça apática. É a imagem de todas as forças elementares, benéficas ou prejudiciais.
Bibliografia:
Boechat, W. A Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes, 2008.
Hopcke, R. H. Guia para a Obra Completa de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2011.
Jung, C. G. Freud e a psicanálise. In: Obras Completas de C. G. Jung, vol. IV. Petrópolis: Vozes, 2011.
Jung, C. G. Civilização em transição. In: Obras Completas de C. G. Jung, vol. X/3. Petrópolis: Vozes, 2011.
Zoja, L. O pai: história e psicologia de uma espécie em extinção. São Paulo: Axis Mundi, 2005.
2 comentários:
Sensacional. De fato, o Arquétipo do Pai me é real hoje que sou um pai. Porém, as nuances inconscientes do dia a dia me foram descobertas após ler seu artigo.
Sensacional. De fato, o Arquétipo do Pai me é real hoje que sou um pai. Porém, as nuances inconscientes do dia a dia me foram descobertas após ler seu artigo.
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