segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Dor da alma e psicoterapia - Roberto Gambini

Texto retirado do livro: A voz e o tempo de Roberto Gambini.

Queria ainda acrescentar que a alma doída adquire uma força, uma radicalidade surpreendente em sua maneira de se expressar e de entender as coisas. É como se, por sofrer, a alma se tornasse ainda mais ousada e mais corajosa nos comentários que tem a fazer sobre este mundo, suas desgraças, verdades e belezas. A dor a torna mais eloquente, mais penetrante, mais surpreendente, e esse seu modo de assim falar, podemos reconhecer em escritores, artistas, pensadores, inovadores de todos os tipos. Não é uma eloquência retórica, não é um uso das palavras ou das emoções usadas para discutir argumentos usuais, mas é como que uma subversão da maneira de se considerar coisas costumeiras.  Parece que a alma, ferida, ao mesmo tempo fica forte naquilo que declara; é como se com isso ganhasse não uma legitimidade, mas espaço, acesso para abordar temas que não costumam ser abordados. Então esse é um dos efeitos desse mistério que procuro formular – e por isso justifica que uma terapia dê valor à dor. Porque poderia ser dito: isso é um viés depressivo da terapia, ou um gostar da dor. O que estou dizendo é exatamente o oposto. É essa dificílima relação com a própria dor ou com a alheia promove inovações. E como venho repetindo, a mim interessam as inovações do conhecimento e do discurso da alma – distinto daquele proferido pelo intelecto e pela razão.

A razão e o intelecto podem ancorar a expressão da alma; mas a origem dessa expressão está nela mesma, e não nos primeiros. Essa força penetrante advém do fato de que só a alma que habitou o Hades consegue lançar luz sobre as obscuridades que a luz da razão não ilumina. Sua luz é outra. É como se a alma que sofreu adquirisse o poder de se iluminar a si mesma, para se revelar. O que ela faz é apenas revelar-se; o resto é com a gente. Quer dizer: a alma somos nós. Mas quando se revela, é o nosso ego, é a nossa consciência, é o nosso humano, demasiadamente humano que tem a tarefa de fazer alguma coisa com o que foi revelado, ou a revelação se perde. A revelação é dada, ela é um dom. Pois ouso dizer que a origem do dom é a dor.

Há uma ideia muito antiga, expressa no mito de Quiron, o Curador Ferido, de que a possibilidade de curar advém da experiência de conhecer a dor. No entanto aqui não estou me referindo especialmente à capacidade de curar, mas àquilo que é produzido pela alma doída: ela produz algo, não se estiola, não fica lamentando eternamente. Algo ocorre na alma ferida. Ela expressa algo, ela passa a iluminar algo. Complemento então: a terapia é uma escuta, não exatamente da fala do paciente, mas do processo transformador da alma doída, do que esta passará a dizer. É preciso um ouvido muito atento para isso, para não se confundirem essas expressões da alma com as oriundas do ego. Elas não são a mesma coisa, e há que se ter um ouvido que ouça essa melodia anímica, porque na verdade são essas manifestações que vão revelar qual é o processo da pessoa na dimensão anímica, objeto este a ser reconhecido e mais estudado. O mais fundo que consigo tocar neste momento é que o trabalho terapêutico tem que ouvir essa matéria fugidia, sem no entanto dirigir o andamento dos passos: são apenas duas pessoas falando, ouvindo e aprendendo a prestar atenção no som das asas batendo.