domingo, 25 de abril de 2010

Sombra e Alquimia - Vera Lucia Paes de Almeida


SOMBRA E ALQUIMIA
Vera Lucia Paes de Almeida
Texto publicado na Revista Hermes, vol. 8, nov. 2003.

Origens da Alquimia:

A Alquimia começou no Ocidente aproximadamente por volta do séc. I a.C. apresentando um declínio gradual após a queda do Império Romano até o séc. X. Durante este período ela floresceu no Império Bizantino e nos diferentes países árabes. Com as cruzadas e a invasão muçulmana na Península Ibérica ela retornou à Europa no séc. XI, unindo-se à Filosofia Escolástica e tendo seu apogeu na Idade Média. No séc. XVII desapareceu definitivamente sendo eclipsada pelo Iluminismo. Parte de seu conhecimento evoluiu para a Química e seu aspecto filosófico e religioso só foi resgatado no séc. XX por C. G. Jung. Ele reconheceu que os tratados alquímicos continham uma linguagem simbólica e falavam do processo de individuação, ou seja, a transformação da personalidade em busca da totalidade. A transmutação dos metais comuns em metais nobres, a busca da pedra filosofal, era o equivalente à busca de integração e conscientizaçã o do centro da personalidade, o Self (Franz, 1998:7).

Alquimia e Cristianismo:
A Alquimia nunca foi hostil aos movimentos religiosos dominantes mas formava uma espécie de tendência subterrânea compensatória.

“O esforço da Alquimia visa a preencher as lacunas deixadas pela tensão dos opostos no Cristianismo.” (Jung, 1994: par. 26)


Essa tensão entre opostos no Cristianismo de que fala Jung, refere-se principalmente à oposição irredutível entre o Bem e o Mal, na qual o Bem é representado exclusivamente por Cristo e o Mal expressa-se na figura do demônio. Assim, o cristão é atirado num conflito e sofrimento insuportáveis, já que o Bem equivale à uma imitação incondicional de Cristo e o Mal a tudo que se opõe a isto. As exigências éticas do cristianismo acabaram por tornarem-se uma impossibilidade de serem vividas integralmente na vida prática.

“O mundo cristão transformou a antinomia entre o bem e o mal num problema universal, erigindo-a em princípio absoluto através da afirmação dogmática dos contrários [...] Essa imitação de Cristo tomada em seu sentido mais profundo, implica um sofrimento intolerável para a maioria dos homens.” (Jung, 1994: par. 25)

Outra lacuna do Cristianismo é o impedimento a qualquer busca ou experiência pessoal do sagrado. Todo conflito deve ser resolvido dentro do âmbito dogmático, acreditando- se apenas naquilo que é prescrito pela Igreja. Disso resulta que o Cristianismo se constituiu como uma religião essencialmente patriarcal, fato este expresso no simbolismo da Trindade.

“O dogma insiste em que o ‘três’ são ‘um’, mas se recusa a reconhecer que os ‘quatro’ sejam ‘um’. Sabe-se que os números ímpares sempre foram masculinos não só para nós, ocidentais, como também para os chineses; quanto aos números pares, são femininos. Assim, a Trindade é uma divindade explicitamente masculina.” (Jung, 1994: par. 25)

Contrapondo- se a isto, a Alquimia propõe seu axioma central, ou seja, o aforismo de Maria Prophetissa:
“ ‘Um torna-se dois, dois torna-se três, e do três provém o um que é o quarto’. Dessa forma, os números ímpares do dogma cristão são entremeados pelos números pares que significam o feminino, a terra, o subterrâneo e até mesmo o próprio mal.” (Jung, 1994: par. 26)

Esses temas são a sombra do cristianismo que a Alquimia procurou retomar em caráter compensatório. Para os alquimistas a matéria era uma contraparte viva e feminina do criador espiritual, e não algo que ficava à margem participando apenas lateralmente. Na Alquimia a matéria era um princípio igualmente divino, chamado freqüentemente por “matriz”, a qual complementava o princípio masculino espiritual da “forma” ou “ação da região etérea sobre os elementos” (Franz, 1998:46).

Ao realizar seus experimentos sobre a matéria nos seus laboratórios, o alquimista entrava em contacto com o inconsciente, a psique objetiva, e projetava os conteúdos arquetípicos nas operações alquímicas. Muitos deles de temperamento extrovertido permaneceram apenas no nível químico de sua busca, mas para muitos outros ressaltou-se o aspecto simbólico do seu trabalho e seus efeitos psicológicos de auto-transformação.

“Os alquimistas preferiam, de modo pouco eclesiástico, a busca do conhecimento à verdade oferecida pela fé, ainda que como homens medievais se julgassem bons cristãos.” (Jung, 1994: par. 41)

Franz (1998:36) diz que nesta cisão entre o dogma oficial do cristianismo e a corrente subterrânea da Alquimia, estariam as raízes do que hoje chamamos de divisão entre religião e ciências naturais. O alquimista tentava resgatar o espírito oculto na matéria ao valorizar o feminino e aceitar o mal na forma da nigredo (uma das fases da Obra) como parte integrante do processo alquímico. Assim, tentava manter juntos os opostos cindidos pelo cristianismo. Além disso, seu método de trabalho incluía igualmente métodos objetivos de laboratório, e métodos introspectivos de imaginação ativa, meditação e observação dos seus sonhos. No entanto, no séc. XVII a Alquimia tornou-se uma ciência natural, puramente extrovertida, excluindo os aspectos psicológicos, filosóficos e religiosos, os quais foram completamente desvalorizados para a formação da ciência prática da Química. E assim, a “religião foi guardada na gaveta para os domingos” (Franz, 1998:37).

Mortificatio (Edinger, 1995:165-197) :
A opus alquímica têm três estágios: nigredo, albedo e rubedo. A mortificatio relaciona-se com a primeira fase da obra, a nigredo.

Nigredo, ou cor negra, refere-se à sombra ou lado escuro da nossa personalidade que está oculto à luz da consciência. O encontro com a sombra é o primeiro passo no processo de individuação. Está relacionado com a dor, sofrimento e morte na Alquimia. Imagens ligadas à tortura, mutilação, apodrecimento (putrefactio) são pré-requisitos para imagens posteriores de crescimento, ressurreição e renascimento. De acordo com a lei dos contrários (enantiodromia) a intensa consciência do escuro constela o lado oposto, a luz.

A mortificatio fala da morte de vários aspectos psíquicos que devem passar por este processo para sua transmutação:

a) Dragão: a imagem do dragão personifica a psique instintiva, a prima matéria. O mito do herói que salva a donzela do dragão expressa a necessidade do resgate da alma da sua prisão nas formas instintivas, primitivas e infantis.
b) O rei; o leão e o sol: referem-se ao princípio diretor do ego consciente e ao instinto de poder, os quais devem ser mortificados para que surja um novo centro, o Self. O velho rei representa um princípio dominante que perdeu sua eficácia e deve submeter-se à transformação.
c) O sapo: é uma variante simbólica do dragão. O sapo como prima matéria representa o desejo irrefreado. É o tema da pessoa ávida, insaciável que se afoga nos próprios excessos. Os desejos devem ser mortos nas suas formas projetadas, de cunho obsessivo.
d) A donzela; os inocentes: a imagem do sacrifício dos inocentes ou da donzela corresponde à necessidade do sacrifício da pureza ou inocência para poder se efetuar a ampliação da consciência. Por exemplo, o mito de Adão e Eva no Paraíso nos fala da consciência que surge depois de se provar do fruto da Árvore do Bem e do Mal.
e) Morte, cemitérios, funerais: imagens que ressaltam a necessidade da morte para que a vida ressurja, estão sempre conectadas ao plantio e germinação de sementes.
f) Lua: simbolismo cíclico da Lua que morre e renasce a cada mês.
g) Corvos ou abutres: pela cor negra, vinculação com a morte e o anúncio de maus augúrios são sempre associados com a mortificatio. A partir da experiência das trevas e do vazio, pode acontecer o encontro com o companheiro interior, o Self.
h) A paixão de Cristo: o intenso sofrimento de Cristo, torturado, flagelado e crucificado é freqüentemente identificado pelos alquimistas com sofrimentos pelos quais passa a prima matéria no seu processo de transformação. O ego tem que se sacrificar para se encontrar com o Self. No entanto, Jung ressalta uma grande diferença entre a vivência do alquimista e do cristão com relação a este arquétipo.

“Não se trata de uma ‘imitação de Cristo’, mas do seu exato oposto, uma assimilação da imagem de Cristo em seu próprio eu, que é o ‘verdadeiro homem’. Já não é um esforço, uma labuta intencional para atingir a imitação, mas antes uma experiência involuntária da realidade representada pela lenda sagrada [...] A Paixão acontece ao adepto, não em sua forma clássica [...] mas na forma expressa no mito alquímico [...] Tudo isso ocorre, não ao próprio alquimista, mas sim ao ‘verdadeiro homem’, que o alquimista sente estar próximo de si, bem como em si, e, ao mesmo tempo, na retorta.” (Jung, 1990: par. 157)

Enfim, enquanto o valor supremo (Cristo) e o maior desvalor (o pecado, o mal) estiverem projetados fora do indivíduo, a psique se esvazia de significado e a vida religiosa se congela em pura exterioridade e formalismo. Jung ressalta que poucos experienciam a imagem divina como a qualidade mais íntima da própria alma, se relacionando apenas com um Cristo exterior. Da mesma forma, o mal é dificilmente vivido como algo importante no caminho do auto-conhecimento como a contrapartida de igual peso ao bem. A conjunctio, etapa final da opus é justamente a possibilidade de aproximar os opostos de modo a gerar o novo, a pedra filosofal ou a criança divina.

“A problemática dos opostos suscitada pela sombra desempenha um papel importante e decisivo na alquimia, uma vez que conduz à unificação dos opostos no decorrer da obra, sob a forma arquetípica do ‘hierosgamos’, ou seja, das ‘núpcias químicas’. Nesta, os opostos supremos sob a forma do masculino e do feminino (como no Yang e Yin chinês) se fundem numa unidade em que os contrários desaparecem, unidade esta incorruptível. A condição necessária no entanto, é que o ‘artifex’ não se identifique com as figuras do opus, mas as preserve em sua forma impessoal e objetiva.” (Jung, 1994: par. 43)

Assim, a aceitação da sombra e do paradoxo que ela traz para a psique é fundamental para a vivência da verdadeira espiritualidade que se expressa no processo de individuação através da busca da totalidade e não da perfeição , pois:
“Só o paradoxal é capaz de abranger a plenitude da vida. A univocidade e a não-contradição são unilaterais e portanto não se prestam para exprimir o inalcançável.” (Jung, 1994: par. 18)

BIBLIOGRAFIA

Edinger, Edward F. 1995 Anatomia da Psique. O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia. São Paulo, Cultrix.
Franz, Marie-Louise von. 1998 A Alquimia e a Imaginação Ativa. São Paulo, Cultrix.
Jung, Carl Gustav 1990 Mysterium Coniunctionis. Vol. XIV/2. Petrópolis, Vozes.
1994 Psicologia e Alquimia. Vol. XII. 2ª ed. Petrópolis, Vozes.

Enviado por Sabina Vanderlei à lista Psi-cológica.

Um comentário:

Anônimo disse...

legal o texto. deu pra aprender muitas coisas diferentes.