segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A psicologia analítica de Carl G. Jung: uma teoria anacrônica ou atual? - D. Júnior Viana Costa

Texto de D. Júnior Viana Costa. Email para contato: juniorvianac@oi.com.br

O texto abaixo surgiu da necessidade de sustentar determinadas posições pessoais quanto ao universo teórico e prático da Psicologia Analítica. Não pretende ser elaborado em formato acadêmico ou ser minha palavra final sobre o tema. As referências ao final servem apenas como orientação. Permaneço inteiramente aberto às discussões. Trata-se de um texto informal que visa somente esclarecer a política assumida, principalmente na minha página Carl Jung Sincero, que tem sido alvo de diversas críticas por parte de alguns junguianos. Admite algumas lacunas que poderiam ser melhores trabalhadas. As críticas são bem vindas desde que compreendam bem a posição de onde emito meu discurso. Considero útil a leitura do texto como forma de se saber o que move meu trabalho na referida página. Peço desculpas pelos eventuais erros de digitação ou de português que possam encontrar. Obrigado. 

Revisão de texto: JD Lucas 



A psicologia analítica de Carl G. Jung: uma teoria anacrônica ou atual? 

D. Júnior Viana Costa 

As mudanças pelas quais o mundo, sobretudo o ocidental, passou nos dois últimos séculos abalaram profundamente os pilares fundamentais da vida humana. Quase todos os campos da experiência humana sofreram grandes metamorfoses e levantaram novas questões quanto ao papel do homem na sua relação com o mundo, consigo próprio e com a sociedade. Religião, tradição moral, ciência, ética, espiritualidade, diplomacia, mundo do trabalho, sexualidade etc, todos os campos foram abalados e se viram forçados a rediscutir suas bases. O historiador egípcio Eric Hobsbawm (1917-2012), definiu o século XX como o Breve século, a Era dos Extremos, que teve início em 1914 com a Primeira Guerra (cem anos atrás) e fim no ano de 1991, com a queda do muro assinalando o fim da antiga União Soviética. A Guerra Fria pode ser tomada como uma metáfora que reflete certa dissociação psíquica no campo da política. De um lado, os ideais de comunidade, de outro a supervalorização do individualismo. 

Carl Jung nasceu em 1875 e veio a falecer em 1961. Presenciou as principais mudanças pelas quais o mundo passava, e, de certa forma, antecipou algumas das possíveis conseqüências de tais mudanças, sobretudo no que diz respeito ao uso unilateral da razão e seu prejuízo para psique coletiva, o que ainda compõe o paradigma científico de nossa época e fornece alguns dados para o entendimento do que seja o espírito de nosso tempo, embora o mesmo venha sendo questionado continuamente sobre sua legitimidade. A obra de Jung reflete o momento de transição entre um determinado modelo social e o surgimento de um novo modelo. A razão, elevada ao posto de deusa pela tradição burguesa iluminista, passou a gozar de onipotência e prestígio, incidindo diretamente na forma como a qual a sociedade se articula e se organiza: na produção em escala global, na filosofia individualista e no consumo de bens e serviços. O sentido da vida vai passando progressivamente do ser para o ter. Tenho, logo existo. 

A ideologia mercantil coloca como centro da existência o sujeito produtivo, consumidor, autônomo, racional, disciplinado, o que constitui um caráter externo e propagandista para que seus objetivos de mercado sejam alcançados. Surge o culto da individualidade, da subjetividade, da autonomia de ação, entre outros ideais. Mas, na mesma medida, por outro lado, há o esfacelamento do indivíduo real enquanto tal, substituindo-o por uma abstração ideológica que, na prática, só reflete o eclipse do sujeito e sua profunda alienação em relação ao social e, sobretudo, em relação a si mesmo (daí Jung defender tão enfaticamente a importância do autoconhecimento em nossos dias). Segundo Bauman, nossa situação atual é dada da seguinte forma: "A viagem nunca termina, o itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é sempre desconhecido." O foco atual ainda é colocado no individual, mas não no singular, o que é verdadeiramente próprio de cada um, e é o que defende Jung. 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A sombra coletiva e os linchamentos no Brasil do século XXI - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Não há consenso sobre a etimologia da palavra linchamento, embora seja provável que tenha se originado a partir do comitê para manutenção da ordem do Capitão William Lynch na revolução dos Estados Unidos. Entretanto, a prática de linchamento nos Estados Unidos foi largamente utilizada no período pós-revolução, não para manter a ordem pública, mas para perseguir e assassinar minorias étnicas, como negros e indígenas, por exemplo; e acabou originando grupos racistas violentos como o Ku Klux Klan. Embora a origem da palavra linchamento seja relativamente recente na história, a prática de capturar “criminosos”, ou qualquer “desgraçado” que receba projeções da sombra coletiva, e realizar execuções públicas (com ou sem julgamento), e muitas vezes realizadas pelos próprios cidadãos, é bastante remota. Na antiguidade, era comum a prática da lapidação, apedrejamentos públicos realizados após condenação oficial. A lei mosaica, isto é, atribuída à Moisés, herói Judeu que miticamente introduziu o povo de Israel na Palestina, prevê a morte por apedrejamento em dezoito situações diferentes; como em casos de incesto, idolatria, blasfêmia, bruxaria e até rebeldia de filhos considerados irrecuperáveis pela família. Tal prática ainda hoje persiste de forma institucionalizada em alguns países muçulmanos. 

As execuções públicas na Europa medieval (e mesmo na revolução francesa) tinham um componente bastante semelhante ao linchamento, pois se por um lado os enforcamentos e decapitações serviam de aviso para o resto da população não cometer os mesmos crimes, por outro lado, o escárnio público em relação aos executados transformava-os em bodes expiatórios para a sombra coletiva. O cidadão humilhado publicamente enquanto caminha em direção à execução no centro de uma praça recebe projeções da sombra de seu tempo e de sua cultura, e por esse motivo, o escárnio vai muito além do crime cometido. As reações dos “cidadãos de bem” são desproporcionais por haver uma situação arquetípica constelada; o cordeiro, ou melhor, o bode deve ser ritualisticamente sacrificado para expiar o pecado coletivo do espírito do tempo, que penetra cada individualidade isoladamente e, assim, convoca cada um à responsabilidade. No entanto, a imolação expiatória da sombra coletiva acaba prevenindo que cada cidadão individualmente assuma a própria responsabilidade em relação à redenção do Diabo. Quer dizer, na medida em que a sombra coletiva é projetada no bode expiatório, e este é ritualisticamente sacrificado em um frenesi arquetípico, o reconhecimento e a integração da própria sombra se tornam dispensáveis. Daí podermos concluir que os linchamentos se caracterizam por uma tentativa malograda de integração da sombra coletiva. Tal tentativa de integração, invariavelmente, não obterá sucesso algum, pois enquanto a sombra estiver projetada, jamais poderá ser integrada; e permanecerá somente como encenação mítica. Além disso, cabe aqui ressaltar a importância do indivíduo, tantas vezes observada por Jung, na transformação da cultura; pois a sombra coletiva atravessa cada individualidade isoladamente e convoca todos a darem uma resposta aos problemas de seu tempo. Por esse motivo cada indivíduo é, ele mesmo, o cordeiro a ser imolado para a expiação dos pecados do mundo. Deste modo, a integração da sombra coletiva se dá através de contínuas autoimolações expiatórias, isto é, do reconhecimento e integração da sombra individual, que sempre traz implícita a sombra coletiva. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A individuação no atual contexto cultural - Luís Paulo B. Lopes

Há entre os junguianos a idéia de que a possibilidade da individuação ocorre no que Jung chamou de metanóia (reorientação), a virada entre a primeira e a segunda metade da vida. A individuação, portanto, seria uma tarefa para a segunda metade da vida; enquanto que na primeira metade teríamos como destino a necessidade de adaptação ao mundo exterior. Isto nunca me soou adequado, pois o jovem está, em muitos casos, bastante envolvido com questões que vão muito além do problema da adaptação ao mundo. É verdade que em alguns casos é adequado relacionarmos determinados processos psíquicos com a idade cronológica, como por exemplo, o desenvolvimento do ego, da primeira infância até a adolescência. Isto de fato parece ser um processo arquetipicamente determinado para ocorrer em períodos cronológicos mais ou menos definidos; pois o vemos se repetir sempre e de novo. É verdade também que o jovem é confrontado com o problema da adaptação ao mundo de forma bastante urgente, pois nascemos em um mundo que já é dado, em uma cultura particular, inseridos em determinada sociedade e em um ambiente familiar definido. O jovem, sem dúvida nenhuma terá que dar conta de se adaptar a este mundo.

No entanto, o homem mais velho também continua a ser confrontado com a questão da adaptação ao mundo. Principalmente em nosso tempo em que as mudanças são extremamente rápidas; e não somente no que diz respeito ao surgimento avassalador de novas tecnologias, mas também de novas formas de se relacionar e da afirmação de uma diversidade cada vez maior que antes era silenciada e excluída pela tradição; sem falar na degeneração da própria tradição. Em nosso tempo tudo muda, e rápido; o que era aceitável há uma década é considerado desprezível atualmente. A necessidade de adaptação ao mundo estará sempre colocada ao indivíduo, independente do período cronológico de sua vida. Considerar que nos adaptamos ao mundo na primeira metade da vida para depois sermos confrontados com o problema do significado, como se aquela primeira fase já estivesse superada, é não conseguir olhar para o agora. 

Individuação somente na segunda metade da vida? - J. Hillman


Texto retirado do livro "O livro do Puer" de James Hillman.

A psique parece ter seu próprio curso, seu próprio tempo. O senex, assim como o puer, pode aparecer em muitos estágios e fases e influenciar qualquer complexo. O padrão de qualquer vida dividida numa moldura ideal de dois, três, sete ou dez estágios da infância à senilidade parece confirmar a regra da entropia. A vitalidade dada no nascimento diferencia-se, esmorece e finalmente se apaga na morte. Mas a vida psíquica num indivíduo também mostra negentropia, na qual, à medida que ela se torna mais ordenada e menos aleatória, torna-se também mais imprevisível e improvável. Em outros termos, essa negentropia poderia ser chamada liberdade. portanto não podemos encaixar a vida psicológica nas condições históricas ou nas estreitas molduras biológicas de "primeira-metade/segunda-metade". Fazê-lo significaria a indicação inicial de que nós mesmos sucumbimos facilmente ao pensamento enganoso do arquétipo da divisão. 

Cura da memória e redenção do tempo - J. Hillman

Texto retirado do livro "O livro do Puer" de James Hillman.

A função específica da psique, a subjetividade que experimenta e grava padronizando as experiências historicamente, que torna a história possível e é seu a priori, foi chamada de Clio. E Clio, como a primeira filha, tem relação especial com a mãe das musas, a lembrança. [...] O nome Clio significa glória, honra, celebração e é ela quem melhor lembra as ações dos heróis. Seu interesse não está nas notícias diárias da história de caso do mundo, ou aquilo que Mircea Eliade chamou de "tempo profano". Em vez disso seu interesse está naqueles momentos nucleares únicos, momentos heróicos através dos quais o arquétipo no centro da alma é revelado redimindo eventos da cegueira dos meros fatos. Assim como nós, indivíduos, estamos atados aos fatos e nossas histórias de caso pessoais por aquilo que lembramos de nossas vidas pessoais, também nossa cultura está viciada na história do tempo profano. Um vício exige cada vez mais, cada vez mais rápido. Muito de nossa inventividade serve meramente para fazer, reunir e reproduzir eventos. [...] Precisamos de mais "informação", temos menos tempo a perder. Alcançamos até uma "história instantânea", que Arthur Schlesinger defende chamando "História Contemporânea", onde tudo aquilo que acontece a todos no cenário público deve ser registrado e aquilo que é registrado deve ser publicado - e rápido. As profanas chroniques scandaleuses - as "profanidades" - dos heróis substituem a glória de Clio.

Na prática analítica aprendemos que uma compreensão arquetípica dos eventos pode curar a fascinação compulsiva com nossa história de caso. Os fatos não mudam, mas sua ordem recebe outra dimensão através de outro mito. Eles são experimentados diferentemente; ganham outro sentido porque são contados através de outro conto. [...] Portanto, a redenção do vício na história profana pode vir da mesma forma. Essa forma demonstraria outra organização arquetípica dos eventos pelos quais sofremos. Porém essa reorganização requer primeiro a mudança na própria memória, de maneira que a cada dia perguntemos não "o que aconteceu?", mas "o que aconteceu para a alma?". Para essa maneira de lembrar os eventos, a memória necessitaria retornar à sua reminiscência de idéias primordiais, à sua associação primordial com as raízes metafóricas da experiência humana. A memória assim transformada registraria primeiro as experiências da alma e apenas secundariamente os acidentes dos eventos. Ou, melhor dizendo, poderia tomar os eventos psicologicamente, ritualmente, não mais apenas sua vítima. Através dessa cura da memória, a própria Clio poderia ser libertada de sua fascinação com a história de caso do mundo e assim ser restaurada ao seu papel de registradora e celebrante daquilo que tem significado. [...]