sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A natureza arquetípica da cor preta e o racismo - J. Hillman

Texto retirado do livro "Psicologia alquímica" de James Hillman.

Entre os povos da região ao sul do Sahara, as três cores primárias - preto-branco-vermelho [...] - formam os próprios princípios governantes do cosmo. Não são apenas palavras para cores, nomes de tons. 

Encontramos uma ideia semelhante nas três gunas da cosmologia indiana: tamas preto, rajas vermelho e sattva branco entram na composição de todas as coisas. O antropólogo Victor Turner afirma que essas três cores "fornecem uma classificação primordial da realidade". São "experiências comuns a toda humanidade", são como que "forças" arquetípicas, "biológicas, psicológicas e logicamente anteriores às classificações sociais, quinhões, clãs, totens sexuais e todo o resto". Para a cultura, preto e branco, e também vermelho, precedem e determinam o modo como a vida humana é vivida.

As afirmações de Turner separam a "cultura" da cor da "ciência da cor". Do ponto de vista cultural, as cores não são meras qualidades secundárias, redutíveis a sensações físicas nos sistemas neurológicos do sujeito que percebe. Por um lado, as cores têm a ver com a luz, reflexão, ótica e nervos; por outro, têm algo a ver com o próprio mundo. Elas são o próprio mundo, e esse mundo não é meramente um mundo colorido em função de acidentes de luz e química, ou como se fosse decorado por um Deus pintor. As cores apresentam a realidade fenomenal do mundo, e modo como ele se mostra e, como agentes operativos do mundo, são princípios formativos primários. [...]

Apenas numa visão de mundo fisicamente reduzida, ou seja, uma visão de mundo reduzida à física e pela física, pode o preto ser chamado de uma não cor, uma ausência de cor, uma privação da luz. [...]

Além disso, a definição negativa e primitiva do preto promove a moralização do par preto-branco. O preto é então definido como o não branco e é privado de todas as virtudes atribuídas ao branco. O contraste se torna oposição, até mesmo contradição, como se o dia fosse definido como uma não noite, e um blackberry definido como um não whiteberry.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Alquimia e redenção da palavra - J. Hillman

Texto retirado do livro "Psicologia alquímica" de James Hillman.

A linguagem conceitual, entretanto, não é uma metáfora autoevidente. Ela é muito contemporânea para ser transparente; estamos vivendo bem imersos nela, e seu mito está acontecendo em tudo que se refere a nós - então ela não tem um senso metafórico embutido. Eu certamente não sei, e não posso perceber, que eu não seja verdadeiramente composto de um ego e um Self, de uma função sentimento e um instinto de poder, de posições depressivas e ansiedades de castração. Isto soa literalmente para mim e, a despeito de minha própria experiência em usar esses termos, há uma inutilidade assombrosa neles. O nominalismo fez com que desacreditássemos em todas as palavras - o que há em um nome? - pois elas são somente "palavras", ferramentas; qualquer outra serviria da mesma forma. Elas não tem substância. 

Mas nossa linguagem psicológica se tornou literalmente real para nós, apesar do nominalismo, porque a psique precisa demonizar e personificar, o que na linguagem torna-se a necessidade de substancializar. A psique anima o mundo em que habita. A linguagem é parte dessa atividade de animação (por exemplo, o discurso onomatopeico com o qual supõe-se que a linguagem "começou"). Se a minha linguagem não preencher essa necessidade de substancializar, a psique vai substanciar de qualquer modo, inesperadamente, endurecendo meus conceitos em coisas físicas ou metafísicas.

Devo insistir que não estou propondo um cancelamento de nossos conceitos e uma restituição dos neologismos arcaicos da alquimia como um novo esperanto para nossa prática e para nossos assuntos. [...] Não é um retorno literal para a alquimia o que é necessário, mas uma restauração do modo alquímico de imaginar. Pois desse modo restauramos a matéria em nosso discurso - e isto, afinal de contas, é nosso objetivo: a restauração da matéria imaginativa, não da alquimia literal. [...]

domingo, 24 de agosto de 2014

Sobre estar vivo - O Sátiro

– Agora você fez a pergunta certa! Respondeu o Sátiro, exibindo um leve sorriso. – Não se trata do caminho que você deve tomar. O mesmo caminho que te levaria para sua aldeia se estivesse vivo, o manteria preso eternamente nessa floresta se estivesse morto. Portanto, como pode ver, a questão não é o caminho. Estar vivo, ao contrário do que possa pensar, não é fazer muitas coisas e preencher o tempo com atividades, mesmo que sejam prazerosas. Podemos fazer muitas coisas interessantes, e isso pode acabar sendo um belo disfarce para nossa morte em vida. Podemos simplesmente ver a vida passar diante de nossos olhos, em uma torrente de acontecimentos, mas sem vive-la de fato. Ficamos parados enquanto a vida escorre através de nós. Estar vivo é permitir que o mundo te toque, e não tentar agarrar o mundo. O segredo do toque é o calor! O toque da vida traz aquele calor brando e contínuo que nos mantém animados. Se não permitimos ser tocados pela vida, morremos congelados. Estar vivo é se ausentar dessa ausência que te aliena do agora. Veja que ironia, seus amigos o chamam de Pedro o ausente! Pois se ausente! Ausente-se da sua própria ausência. Esse é o segredo de estar vivo. Você trabalha com tanto afinco em uma salina e nunca se deu conta de que para viver basta usar o sal! É preciso salgar a vida. Quando salgamos a vida ela ganha viscosidade. Sabe, é preciso que a vida seja viscosa em um ponto ideal; para que não escorra completamente entre seus dedos, mas para que também não fique demasiadamente grudada em sua pele. É importante que permaneça fluida e ao mesmo tempo aderente, no ponto certo. Isso é estar vivo! Estando vivo, escolha qualquer caminho que ele te levará de volta a sua aldeia.