domingo, 3 de agosto de 2008

Auto-Realização e Distúrbios Psicológicos - Roberto Assagioli

O desenvolvimento espiritual é uma longa e árdua jornada, uma aventura por estranhas terras plenas de surpresas, de alegrias e de beleza, de dificuldades e até de perigos. Envolve o despertar de potencialidades até então adormecidas, a elevação da consciência a novos domínios, uma drástica transmutação dos elementos "normais" da personalidade e um funcionamento no âmbito de uma nova dimensão interior. Uso o termo "espiritual" em sua conotação mais ampla e sempre com referência à experiência humana empiricamente observável. Nesse sentido, "espiritual" remete não somente a experiências tradicionalmente consideradas religiosas, como também a todos os estados de consciência e a todas as funções e atividades humanas que têm como denominador comum a posse de valores superiores aos comuns-valores éticos, estéticos, heróicos, humanitários e altruístas. Na psicossíntese, entendemos essas experiências de valores superiores como produtos dos níveis supraconscientes do ser humano. Pode-se conceber o supraconsciente como a contraparte superior do inconsciente inferior tão bem mapeado por Freud e por seus sucessores. Agindo como o centro unificador do supraconsciente e da vida do indivíduo como um todo, temos o Eu Transpessoal ou Superior. Logo, as experiências espirituais podem limitar-se aos domínios supraconscientes ou incluir a percepção consciente do Eu. Essa percepção torna-se aos poucos Auto-Realização - a identificação do "eu" com o Eu Transpessoal. Na discussão seguinte, farei considerações acerca dos vários estágios do desenvolvimento espiritual, incluindo o atingimento da realização do Eu. Não deveríamos nos surpreender ao sabermos que uma transformação tão fundamental é marcada por vários estágios críticos que podem ser acompanhados por inúmeros distúrbios mentais, emocionais e até físicos. À observação objetiva e clínica do terapeuta, esses elementos podem parecer os mesmos decorrentes de causas mais comuns. Na realidade, contudo, eles têm um significado e uma função bem distintos, precisando ser tratados de maneira bem diferente. A incidência de distúrbios de origem espiritual cresce rapidamente hoje acompanhando de perto o número crescente de pessoas que, consciente ou inconscientemente, abrem o seu próprio caminho para uma vida mais plena. Além disso, o maior desenvolvimento e complexidade da personalidade do homem de nossos dias e a sua mente cada vez mais crítica tornaram o desenvolvimento espiritual um processo mais rico e compensador, mas, ao mesmo tempo, mais difícil e complicado. No passado, uma conversão moral, uma simples devoção sincera a um mestre ou salvador, uma amorosa entrega a Deus costumavam ser suficientes para abrir as portas para um nível superior de consciência e para um sentido de união e de realização interiores. Agora, entretanto, os aspectos mais variados e complexos da personalidade do homem moderno estão envolvidos no processo e requerem uma transmutação e uma harmonização entre si: seus impulsos fundamentais, suas emoções e sentimentos, sua imaginação criadora, sua mente inquisitiva, sua vontade afirmativa, bem como suas relações sociais e interpessoais. Por essas razões, é útil fazer uma descrição geral dos distúrbios passíveis de surgir nos vários estágios do desenvolvimento espiritual, assim como dar algumas indicações sobre como tratar melhor deles. Podemos reconhecer nesse processo quatro estágios, ou fases, críticos: Crises que precedem o despertar espiritual, Crises causadas pelo despertar espiritual, Reações que seguem o despertar espiritual, e Fases do processo de transmutação. Usei o termo simbólico “despertar” porque ele sugere com clareza a tomada de consciência de uma nova área da experiência, a abertura dos olhos até então fechados para uma realidade interior antes desconhecida.


Crises que Precedem o Despertar Espiritual
Para melhor entender as experiências que costumam preceder o despertar, devemos examinar algumas das características psicológicas do ser humano “normal”. Dele, pode-se dizer que “deixa-se viver” em vez de viver. Toma a vida tal como ela vem e não questiona o seu significado, o seu valor ou o seu propósito; dedica-se à satisfação dos desejos pessoais; busca o prazer dos sentidos e das emoções, a segurança material ou a realização das ambições pessoais. Se for mais maduro, subordina as satisfações pessoais ao cumprimento dos vários deveres sociais e familiares que lhes são atribuídos, mas sem procurar entender as bases em que esses deveres se apóiam ou a sua fonte. Possivelmente se considera “religioso” e crente em Deus, mas em geral sua religião é exterior e convencional e, quando se conforma às injunções da sua igreja e participa dos seus ritos, ele acha que faz tudo o que lhe foi exigido. Em resumo, sua crença operacional é a de que a única realidade é a do mundo físico que ele pode ver e tocar, razão por que tem forte apego aos bens materiais. Assim, para todos os propósitos práticos, ele considera esta vida um fim em si mesmo. Sua crença num “céu” futuro, se ele conceber um, é totalmente teórica e acadêmica – como o prova o fato de ele fazer os maiores esforços para adiar o máximo possível a sua ida para as delícias do céu. Mas pode ocorrer de esse “homem normal” ser surpreendido e perturbado por uma mudança – súbita ou gradual – de sua vida interior. Isso pode acontecer depois de uma série de desilusões; não é incomum que sobrevenha depois de algum choque emocional, como a perda de um ente querido ou de um amigo muito amado. Mas por vezes se manifesta sem causa aparente e no pleno gozo da saúde e da prosperidade. A mudança começa muitas vezes com uma crescente sensação de insatisfação, de carência, de “alguma coisa que falta” - que nada tem de material e definido; trata-se de algo vago e fugidio que a pessoa não consegue descrever. Acrescenta-se a isso, gradualmente, um sentido de irrealidade e de vazio com relação à vida cotidiana. Assuntos pessoais, que antes absorviam tanto a atenção e o interesse, parecem recuar, em termos psicológicos, para o segundo plano; perdem importância e valor. Surgem novos problemas. A pessoa começa a procurar a origem e o propósito da vida, a perguntar a razão de muitas coisas que antes tinha por certas – a questionar, por exemplo, o sentido do sofrimento pessoal e alheio, e da justificativa possível para tantas desigualdades no destino dos homens.Quando chegou a esse ponto, a pessoa pode entender e interpretar erroneamente a sua condição. Muitos que não compreendem o significado desses novos estados mentais os consideram fantasias e devaneios anormais. Alarmados com a possibilidade de desequilíbrio mental, esforçam-se por combatê-los de várias formas, fazendo frenéticos esforços para recuperarem a ligação com a “realidade” da vida cotidiana, que parece fugir-lhes. É freqüente que se atirem, com ardor crescente, numa girândola de atividades externas, buscando novas ocupações, novos estímulos e novas sensações. Por esses e outros meios, podem conseguir por algum tempo aliviar a sua perturbação, mas não podem livrar-se dela permanentemente. O problema continua a fermentar nas profundezas do seu ser, solapando as bases de sua existência comum, até poder irromper novamente, talvez depois de um longo tempo, com intensidade redobrada. O estado de incômodo e de agitação vai ficando cada vez mais doloroso e a sensação de vazio interior ainda mais intolerável. O indivíduo sente-se confuso; boa parte do que constituía a sua vida agora lhe parece ter desaparecido como um sonho, sem que nenhuma nova luz tenha aparecido. Na verdade, ele ainda ignora a existência dessa luz ou então não pode acreditar que ela venha a iluminá-lo. É freqüente que esse estado de agitação interior seja acompanhado por uma crise moral. Sua consciência dos valores se enfraquece ou se torna mais sensível; surge um novo sentido de responsabilidade e o indivíduo pode sentir-se oprimido por um pesado sentimento de culpa. Ele julga a si mesmo com severidade e é presa fácil de um profundo desânimo, chegando a ponto de pensar em suicídio. Para ele, a aniquilação física parece ser a única conclusão lógica do crescente sentimento de impotência e desespero, de colapso e de desintegração.
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(1)Os dados acima são, com efeito, uma descrição geral dessas experiências. Na prática, as experiências e reações das pessoas variam amplamente. Há alguns que nunca chegam a esse estágio agudo, enquanto outros o alcançam quase de uma vez. Uns são mais acossados por dúvidas intelectuais e problemas metafísicos; em outros, são mais pronunciadas as depressões emocionais ou as crises morais. É importante reconhecer que essas várias manifestações de crise muito se assemelham a alguns dos sintomas tidos como característicos de estados neuróticos e de estados psicóticos fronteiriços. Em alguns casos, a tensão e a pressão da crise também produzem sintomas físicos como tensão nervosa, insônia e outros distúrbios psicossomáticos. Portanto, para lidar corretamente com essa situação, é essencial determinar a fonte básica das dificuldades. De modo geral, isso não é difícil. Observados isoladamente, os sintomas podem ser idênticos; mas um exame cuidadoso de suas causas, uma consideração da personalidade individual em sua inteireza e - o que é mais importante - o reconhecimento de sua situação real, existencial, revelam a natureza e o nível distintos dos conflitos de base. Em casos comuns, os conflitos ocorrem entre os impulsos "normais", entre estes e o "eu" consciente, ou entre a pessoa e o mundo exterior (em particular com as pessoas próximas, como os pais, o parceiro ou os filhos). Nos casos que aqui consideramos, contudo, os conflitos ocorrem entre algum aspecto da personalidade e as tendências e aspirações progressivas e emergentes de caráter moral, religioso, humanitário ou espiritual. E não é difícil determinar a sua presença uma vez que se reconheçam a sua validade e a, sua realidade, em vez de descartá-las como meras fantasias ou sublimações. De maneira geral, a emergência de tendências espirituais pode ser considerada o resultado de pontos decisivos do desenvolvimento, do crescimento da pessoa. Há possíveis complicações: por vezes, essas novas tendências emergentes revivem ou exacerbam conflitos antigos ou latentes entre elementos da personalidade. Esses conflitos, que seriam por si mesmo regressivos, são na verdade progressivos aoocorrerem nessa perspectiva mais ampla. E o são porque facilitam alcançar uma nova integração pessoal, mais abrangente, num nível superior - na direção do qual a própria crise abriu o caminho. Assim sendo, essas crises são preparativos positivos, naturais e, com freqüência, necessários para o progresso do indivíduo. Eles trazem à superfície elementos da personalidade que precisam ser considerados e modificados no interesse do crescimento adicional da pessoa.
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Crises Causadas pelo Despertar Espiritual
A abertura de um canal entre os níveis consciente e supraconsciente, entre o "eu" e o Eu, assim como a cascata de luz, de energia e de júbilo que a segue, costumam produzir uma prodigiosa liberação. Os conflitos e sofrimentos precedentes, bem como os sintomas físicos e psicológicos que geraram, por vezes desaparecem com surpreendente rapidez, confirmando o fato de não se deverem a causas físicas, mas de serem o resultado direto de um esforço interior. Nesses casos, o despertar chega a uma real resolução. Mas em outros casos, não muito incomuns, a personalidade não consegue assimilar direito o influxo de luz e de energia. Isso ocorre, por exemplo, quando o intelecto não é bem coordenado e desenvolvido; quando as emoções e a imaginação são descontroladas; quando o sistema nervoso é demasiado sensível; ou quando a entrada de energia espiritual, dado o seu caráter súbito e a sua intensidade, é insuportável.
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(2)A incapacidade mental de suportar a iluminação, ou uma tendência de autocentração ou vaidade, podem levar à interpretação errônea, disso resultando, por assim dizer, uma "confusão de níveis". A distinção entre verdades absolutas e relativas, entre o Eu e o "eu" fica imprecisa e as energias espirituais que entram podem ter o efeito infeliz de alimentar ou de inflar o ego pessoal. O autor descobriu um incrível exemplo desse efeito prejudicial no Hospital Psiquiátrico de Ancona, Itália. Um dos internos, um homenzinho simples, fotógrafo, declarava calma e persistentemente ser Deus. Ele construíra, em torno dessa idéia central, grande número de delírios fantásticos sobre hostes celestiais comandadas por ele; ao mesmo tempo, era a mais pacífica, gentil e educada pessoa que se possa imaginar, sempre pronta a servir aos médicos e pacientes. Era tão confiável e competente que fora encarregado da preparação de remédios e até tinha as chaves da farmácia. Sua única falha de comportamento nessa função era um ocasional roubo de açúcar para agradar a alguns dos outros internos. Terapeutas de visão materialista provavelmente o considerarão, tão-somente, um paciente afetado por delírios paranóides; mas esse simples rótulo diagnóstico oferece pouca ou nenhuma ajuda na compreensão da natureza e das causas verdadeiras desses distúrbios. Por conseguinte, parece valer a pena explorar a possibilidade de uma interpretação mais profunda da ilusória convicção desse homem. A experiência interior do Eu espiritual, e a sua íntima associação com o seu pessoal, dão um sentido de expansão interior, de universalidade, assim como criam a convicção de se participar de alguma maneira da natureza divina. Nas tradições religiosas e doutrinas espirituais de todas as épocas, encontramos inúmeras comprovações dessa questão - algumas delas expressas em termos avançados. Há na Bíblia uma frase explícita: "Eu disse: vós sois deuses; e todos vós sois filhos do Altíssimo." Santo Agostinho: "Quando ama algo, a alma torna-se semelhante a ele; se amar coisas terrenas, torna-se terrestre, mas se amar a Deus não se tornará Deus?" A expressão mais extrema da identidade do espírito humano, em sua essência pura e verdadeira, com o Espírito Supremo está contida no ensinamento central da filosofia vedanta: Tat Tvam Asi (Tu És Isto) e Aham evam param Brahman (Em verdade, eu sou o Supremo Brahman). Como quer que concebamos o relacionamento entre o eu individual, ou "eu", e o Eu Universal, consideremo-los semelhantes ou diferentes, distintos ou unidos, o mais importante é reconhecer com clareza, e manter sempre presente, na teoria e na prática, a diferença entre o Eu em sua natureza essencial - aquilo que tem sido chamado de "Fonte", "Centro", "o Ser profundo", o "Ápice" de nós mesmos - e o pequeno eu, ou "eu", identificado com a personalidade comum, da qual costumamos ter consciência.
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(3) A desconsideração dessa distinção tem conseqüências absurdas e perigosas.A distinção fornece a chave para a compreensão do estado mental do paciente citado e de outras formas extremas de auto-exaltação e autoglorificação. O erro fatal de quantos são vitimados por essas ilusões é atribuir ao seu eu pessoal, ou "eu", as qualidades e poderes do Eu Superior ou Transpessoal. Em termos filosóficos, trata-se de um caso de confusão entre uma verdade relativa e uma verdade absoluta, entre os níveis empírico e transcendente da realidade. Exemplos dessa confusão não são incomuns entre pessoas que ficam perturbadas ao terem contato com verdades grandes demais ou com energias demasiado potentes para a apreensão pelas suas capacidades mentais e para a assimilação pela sua personalidade. O leitor sem dúvida se lembrará de exemplos de auto-engano semelhante entre seguidores fanáticos de vários cultos. Está claro que, nessa situação, é no mínimo perda de tempo argumentar com a pessoa ou ridicularizar a sua aberração; isso só vai servir para despertar a sua oposição e o seu ressentimento. O melhor é mostrar-se simpático e, embora admitindo a verdade última de sua crença, assinalar a natureza do seu erro e ajudá-la a aprender a fazer a necessária distinção de níveis. Há também casos em que o súbito influxo de energias produz uma perturbação emocional que se exprime num comportamento descontrolado, desequilibrado e desordenado. Gritar e chorar, cantar e ter explosões de vários tipos caracterizam essa modalidade de resposta. Se for ativo e impulsivo, o indivíduo pode ser facilmente impelido, pela excitação do despertar interior, a desempenhar o papel de profeta ou de salvador; pode fundar uma nova seita e começar uma espetacular campanha de proselitismo.Em alguns indivíduos sensíveis, há um despertar de percepções parapsicológicas. Eles têm visões, que acreditam ser de seres exaltados; podem ouvir vozes ou começar a escrever automaticamente, aceitando as mensagens ao pé da letra e obedecendo a elas de modo irrestrito. A qualidade dessas mensagens é extremamente variada. Algumas contêm refinados ensinamentos e outras são muito pobres ou sem sentido. Sempre devemos examiná-las com muita discriminação e um sólido julgamento, e sem nos deixarmos influenciar pela sua origem incomum nem por alegações do seu pretenso transmissor. Não se deve atribuir nenhuma validade a mensagens que contenham ordens definidas e determinem a obediência cega, nem às que tendem a exaltar a personalidade do receptor.
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Reações ao Despertar Espiritual
Como dissemos, um despertar interior harmonioso é caracterizado por uma sensação de júbilo e de iluminação mental que traz consigo uma percepção do sentido e do propósito da vida; ela dissipa muitas dúvidas, oferece a solução para muitos problemas e fornece uma fonte interior de segurança. Ao mesmo tempo, surge a compreensão de que a vida é una e uma chuva de amor flui pelo indivíduo desperto para os semelhantes e para toda a criação. A personalidade anterior, com seus contornos grosseiros e características desagradáveis, parece ter passado para o segundo plano, e uma nova pessoa, amorosa e adorável, sorri para nós e para o mundo inteiro, ávida por ser gentil, por servir e por compartilhar suas riquezas espirituais recém-adquiridas, cuja abundância lhe parece grande demais para ser contida. Esse estado de júbilo exaltado pode durar por períodos variáveis, mas está fadado a desaparecer. O influxo de luz e de amor é rítmico, como todas as coisas do universo. Depois de algum tempo, diminui ou cessa e a maré cheia é seguida pela vazante. A personalidade foi infundida e transformada, mas essa transformação raramente é permanente ou completa. O mais comum é a reversão de uma ampla parcela de elementos da personalidade envolvidos ao seu estado anterior. O processo fica mais claro se observarmos a natureza de uma experiência culminante em termos de energias e de níveis de organização. Dada a sua natureza sintetizadora, as energias supraconscientes agem sobre os elementos da personalidade de maneiras que tendem a levá-los ao seu próximo nível superior de organização. Alcançado esse nível, há liberação de energia sinérgica e esta produz o êxtase, o enlevo e o júbilo característicos dessas experiências. A depender da quantidade de energia supraconsciente irradiada pelo Eu, da capacidade da pessoa na época e de muitos outros fatores, esse nível superior de organização pode ou não ser estável. Na maioria dos casos, ele permanece enquanto o Eu irradiar a sua energia. Mas uma vez que essa energia seja retirada - o que termina por acontecer, devido à natureza cíclica da atividade do Eu -, há uma tendência mais ou menos pronunciada na personalidade no sentido de reverter ao seu nível precedente de organização. Por razões de clareza, podemos considerar três resultados possíveis que tipificam as conseqüências desse processo:
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1. A energia do Eu é forte o bastante para alcançar essa integração superior da personalidade, bem como para transformar ou decompor os padrões e tendências inerentes à personalidade que tenderiam a fazê-la reverter ao estado precedente. Esse resultado é relativamente raro e é ilustrado por casos em que a vida da pessoa é súbita e permanentemente elevada e transformada como decorrência direta e imediata de um despertar espiritual.
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2. A energia transmitida pelo Eu é menos intensa e/ou a personalidade é menos capaz de uma resposta, razão por que, embora se atinja um nível superior de organização, apenas algumas das tendências e padrões regressivos da personalidade passam por uma transformação total, sendo a maioria deles, tão- somente, neutralizados temporariamente pela presença de energias superiores. Por isso, a integração superior alcançada pela personalidade só se mantém enquanto a energia do Eu estiver sendo transmitida de modo ativo. Quando essa energia é retirada, a personalidade reverte ao estado precedente. Mas permanece - e isso costuma ser a parte mais útil da experiência - um modelo ideal e um sentido de direção que a pessoa pode usar para completar a transformação por meio dos seus próprios métodos intencionais.
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3. A energia transmitida pelo Eu não é suficiente para produzir o nível superior de organização. Isso faz a energia ser absorvida pelos blocos e padrões ocultos que impedem a integração superior. Isso resulta em sua energização e desvelamento, que permitem que os reconheçamos e lidemos com eles. Nesses casos, a experiência costuma ter uma qualidade dolorosa e a sua origem transpessoal costuma passar despercebida. Mas, na realidade, o valor é o mesmo, pois a experiência pode mostrar à pessoa os próximos passos a serem dados para ela alcançar os mesmos alvos e estados, assim como nos outros casos.
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Com efeito, é importante lembrar que a experiência da pessoa não costuma enquadrar-se perfeitamente em nenhuma dessas categorias definidas. A maioria das experiências espirituais contém uma combinação, em várias proporções, de mudanças permanentes, de mudanças temporárias, do reconhecimento de obstáculos que devem ser vencidos e da vivida compreensão do que significa existir nesse plano superior de integração. Essa compreensão torna-se um modelo ideal, um farol luminoso na direção do qual se pode navegar e que se pode eventualmente alcançar pelos próprios meios. Mas a vivência da retirada das energias transpessoais e da perda do estado de ser exaltado é necessariamente dolorosa e pode, em alguns casos, produzir reações fortes e sérios problemas. A personalidade redesperta e se afirma com força renovada. Todas as pedras e resíduos que tinham sido cobertos e ocultados pela maré cheia surgem outra vez. Ocorre por vezes a vitalização de propensões e impulsos inferiores até então adormecidos no inconsciente pelo influxo de energias superiores, ou a sua rebelião amarga contra as novas aspirações e propósitos, que constituem um desafio e uma ameaça à sua expressão descontrolada. A pessoa, cuja consciência moral está agora mais aperfeiçoada e exigente e cuja ânsia de perfeição tornou-se mais intensa, julga com maior severidade e condena a própria personalidade com renovada veemência; ela pode alimentar a crença errônea de que se tornou ainda menos do que era. Às vezes, a reação da personalidade se intensifica a tal ponto que leva o indivíduo a negar de fato o valor e até a realidade de sua experiência recente. Surgem na mente dúvidas e críticas e ele é tentado a encarar a coisa toda como uma ilusão, uma fantasia ou uma intoxicação emocional. Torna-se amargo e sarcástico, ridiculariza a si e aos outros, e até vira as costas aos seus ideais e aspirações superiores. Contudo, por mais que tente, não pode retornar ao seu antigo estado; ele teve a visão, e a beleza e o poder de atração dela permanecem com ele apesar de seus esforços para suprimi-los. Ele não pode aceitar a vida cotidiana como antes nem satisfazer-se com ela. É assaltado por uma "saudade do divino" que não o deixa em paz. Em casos extremos, a reação pode ser tão intensa que se torna patológica, produzindo um estado de depressão e até de desespero, com impulsos suicidas. Essa condição muito se assemelha com a depressão psicótica - antes denominada "melancolia" -, caracterizada por um agudo sentido de indignidade, uma auto-depreciação e uma auto-acusação sistemáticas, que podem ficar vividas a ponto de gerarem o delírio de que se está no inferno, condenado por todo o sempre. Há também uma forte e dolorosa sensação de incompetência intelectual; uma paralisia da força de vontade, acompanhada por indecisão e incapacidade de agir. Mas, no caso de quem teve um despertar interior ou alguma realização espiritual, esses distúrbios não devem ser considerados uma mera condição patológica; têm causas distintas, muito mais profundas, como o indicaram Platão e São João da Cruz com analogias semelhantes. Platão, na famosa alegoria contida no Livro Sete da República, compara o homem não iluminado com prisioneiros numa caverna ou gruta escura, e diz: No início, quando algum deles se liberta e é subitamente compelido a levantar-se e a olhar em torno, caminhando na direção da luz, sobrevém-lhe agudas dores; o clarão o incomodará e ele não poderá ver as realidades cujas sombras vira em seu estado anterior. São João da Cruz usa palavras curiosamente semelhantes ao falar da experiência que denominou "a noite escura da alma": O eu está nas trevas porque é cegado por uma luz acima de suas condições... Tal como os olhos enfraquecidos e toldados padecem quando a clara luz os atinge, assim também o espírito, em razão de sua impureza, sofre inexcedíveis dores quando a Luz Divina brilha de fato sobre ele. E quando os raios da pura Luz reluzem sobre o espírito para expelir as impurezas, este se percebe tão impuro e insignificante que tem a impressão de que Deus Se pôs contra ele e de que ele mesmo se contrapôs a Deus. As palavras de São João sobre a "luz" que "reluz sobre o espírito para expelir as impurezas" tratam da natureza essencial do processo. Mesmo do ponto de vista limitado da personalidade, isso pode parecer um retrocesso ou uma fase indesejável - "tem a impressão de que Deus Se pôs contra ele e de que ele mesmo se contrapôs a Deus" -, da perspectiva muito mais ampla do Eu Transpessoal, essa fase, muitas vezes chamada, adequadamente, de "purgação", é na verdade um dos mais úteis e frutíferos estágios do crescimento. A luz do Eu brilha sobre as "impurezas" e as traz à consciência do indivíduo para facilitar o seu processo de trabalho com elas. Embora por vezes possa ser laborioso, esse processo é um aspecto fundamental de um canal confiável e permanente de contato entre a pessoa e a sua natureza transpessoal ou supraconsciente. O modo correto de lidar com alguém afetado por esse tipo de crise consiste em transmitir-lhe uma real compreensão da natureza da crise. É como se a pessoa tivesse voado até o topo da montanha, banhada pela luz do sol, e percebesse a glória e a beleza do panorama que se estendia aos seus pés, mas tivesse sido obrigada a voltar, com relutância, reconhecendo, arrependida, que o difícil caminho para o alto deve ser trilhado passo a passo. O reconhecimento de que essa descida - ou "queda" - é um evento natural traz alívio emocional e mental e encoraja o indivíduo a empreender a difícil tarefa de enfrentar o caminho da Auto-Realização. Em última análise, a crise é superada com a percepção de que o valor verdadeiro e mais profundo da experiência é o fato de oferecer, como eu disse, uma "visão palpável" de um melhor estado de ser e, portanto, um mapa, um modelo ideal para o qual a pessoa pode dirigir-se e que pode tornar-se uma realidade permanente.
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O Processo de Transmutação
Esse estágio segue o reconhecimento de que as condições necessárias a serem atendidas para a elevada façanha da Auto-Realização são uma regeneração e uma transmutação completas da personalidade. Trata-se de um processo longo e multilateral que compreende várias fases: a remoção ativa dos obstáculos ao influxo e à operação das energias supraconscientes; o desenvolvimento das funções superiores adormecidas ou não-desenvolvidas; e períodos em que se pode deixar o Eu Superior agir, mediante a receptividade à sua orientação. Trata-se de um período deveras frutuoso e memorável, cheio de mudanças, ou de alternâncias entre luz e trevas, entre alegria e sofrimento. É uma época de transição, de saída da velha condição sem ter ainda alcançado a nova de maneira firme; um estágio intermediário em que, como bem se disse, a pessoa é como uma lagarta em transformação na borboleta alada. Mas o indivíduo em geral não tem a proteção de um casulo onde passar a metamorfose em paz e em recolhimento. Ele deve - particularmente em nossos dias - permanecer onde está na vida e continuar a cumprir da melhor maneira as suas tarefas familiares, profissionais e sociais. É um problema semelhante ao dos engenheiros que reparam uma estação ferroviária sem interromper o tráfego. Apesar dos desafios desse empreendimento, a pessoa vai sentindo, em sua ação, um progresso gradual e crescente. Sua vida fica impregnada de um sentido de significado e de propósito, as tarefas corriqueiras são vitalizadas e elevadas pela sua crescente consciência do seu lugar num esquema mais amplo de coisas. Com a passagem do tempo, o indivíduo reconhece com maior plenitude e de modo mais claro o caráter da realidade, do homem e de sua própria natureza superior. Começa a desenvolver um quadro conceitual mais coerente que lhe permite melhor entender o que observa e vive, e que lhe serve não apenas de meio de orientação para um conhecimento mais profundo, como também de fonte de serenidade e ordem em meio às circunstâncias mutantes da vida. Como resultado, ele começa a dominar cada vez mais tarefas que antes pareciam além da sua capacidade. Autuando, cada vez mais a partir de um centro superior de unificação da personalidade, ele harmoniza os seus diversos elementos de personalidade numa progressiva unidade; e essa integração mais completa dá-lhes maior eficácia e mais alegria.Esses são os resultados geralmente observados, no curso de um longo período de tempo, como decorrência do processo de transmutação da personalidade sob o impulso de energias supraconscientes. Mas o processo nem sempre tem fluidez absoluta. Isso não causa surpresa, dada a complexidade da tarefa de refazer a personalidade em meio às circunstâncias da vida diária. Como regra geral, algumas dificuldades existem em quase todos os casos e é possível observarmos estágios temporários em que se manifestam condições opostas às que mencionei. Isso costuma ocorrer imediatamente depois da passagem do auge de excitação, e o indivíduo retorna à sua tarefa dual de autotransformação e atendimento das muitas exigências da vida. A aprendizagem da habilidade de usar as próprias energias dessa forma em geral demora algum tempo e pode durar o tempo que antecede a implementação equilibrada das duas tarefas e sua eventual compreensão como uma única atividade. Por isso, não espanta encontrarmos estágios em que a pessoa fica tão envolvida com a autotransformação que a sua capacidade de lidar de maneira bem-sucedida com os problemas e atividades da vida normal pode ser prejudicada. Observada de fora e avaliada em termos da eficiência comum, orientada para resultados, ela pode parecer temporariamente menos capaz do que antes. Nesse estágio transitório, a pessoa pode não escapar de julgamentos injustos por parte de amigos ou de terapeutas bem-intencionados mas sem iluminação, podendo vir a ser alvo de observações pungentes e sarcásticas sobre como os seus "elevados" ideais e aspirações espirituais a tornam fraca e incapaz na vida prática. Esse tipo de crítica é muito doloroso e sua influência pode gerar dúvidas e desânimo. Quando ocorre, essa provação constitui um dos testes a serem enfrentados no caminho da Auto-Realização. Seu valor está no fato de ensinar a vencer a sensibilidade pessoal, constituindo uma oportunidade de desenvolvimento da independência interior e da autoconfiança sem ressentimentos. Deve-se aceitá-la com alegria ou, ao menos, com serenidade, e usá-la como uma oportunidade de criação de força interior. Se, por outro lado, as pessoas do ambiente do indivíduo forem iluminadas e compreensivas, sua ajuda será grande e lhe poupará muitos atritos e sofrimentos. Esse estágio passa, com o tempo, à medida que a pessoa aprende a dominar e a unificar a sua tarefa dual. Mas quando as complexidades da tarefa não são reconhecidas nem aceitas, as tensões naturais do crescimento, presentes no processo, podem ser exacerbadas, durar por longos períodos ou se repetirem com freqüência desnecessária. Isso ocorre em especial quando o indivíduo se envolve tanto no processo de auto-transformação que exclui o mundo exterior com uma introversão obstinada e excessiva. No crescimento humano, são naturais os períodos de introversão saudável; mas se forem levados a extremos ou transformados em atitude geral de afastamento da vida do mundo, podem gerar inúmeras dificuldades para a pessoa, não somente com amigos, colegas e familiares impacientes e críticos como interiormente, quando a introversão natural se torna auto-obsessão. Dificuldades semelhantes podem surgir se a pessoa não lidar com seus aspectos negativos revelados no processo de despertar espiritual. Em vez de transmutá-Ios, ela pode refugiar-se em fantasias interiores de perfeição atingida ou em fugas imaginárias. Mas o conhecimento reprimido das imperfeições reais o assombra e aqueles que a cercam contestam as suas fantasias. Sob essa dupla pressão, não é incomum que a pessoa seja acometida por uma variedade de problemas psicológicos, como insônia, depressão emocional, exaustão, aridez, agitação mental e inquietação. Esses distúrbios produzem com facilidade toda espécie de sintomas e desordens de natureza física. Muitos desses problemas podem ser bastante reduzidos ou eliminados de vez mediante a busca do próprio processo de crescimento com afinco, dedicação e zelo, mas sem identificação com ele. O cultivo de um compromisso desapegado dá à pessoa a flexibilidade necessária para a máxima realização da tarefa. O indivíduo pode então aceitar as tensões exigidas do processo novo e complexo; pode recusar-se a ter autopiedade a partir do perfeccionismo frustrado; pode aprender a ver a si mesmo com humor e dispor-se a fazer experiências com mudanças e arriscar-se a mudar; e pode voltar-se, com auto-aceitação de suas atuais limitações, para pessoas competentes - terapeutas profissionais, conselheiros ou amigos iluminados – em busca de apoio e de orientação. Outro conjunto de dificuldades pode ser causado pelo esforço pessoal excessivo de aceleração de percepções superiores mediante a inibição e a repressão violentas dos impulsos agressivos e sexuais - tentativa que só serve para intensificar os conflitos e os seus efeitos. Essa atitude costuma resultar de concepções morais e religiosas demasiado rígidas e dualistas. Isso provoca a condenação dos impulsos naturais, considerados "ruins" ou "pecaminosos". Hoje, um grande número de pessoas abandonou conscientemente essas atitudes, mas ainda pode estar inconscientemente condicionado por elas em alguma medida. Essas pessoas podem manifestar ambivalência ou oscilação entre duas atitudes extremas - a repressão rígida e a expressão incontrolada de todos os impulsos. Esta última, embora catártica, não é uma solução aceitável do ponto de vista ético nem da perspectiva psicológica; ela sempre produz novos conflitos - entre os vários impulsos básicos, ou entre eles e as barreiras impostas pelas convenções sociais e pelas exigências das relações interpessoais. A solução está, na verdade, ao longo das linhas de uma gradual reorientação e de uma gradativa integração harmoniosa de todos os impulsos da personalidade, primeiro por meio de reconhecimento, da aceitação e da coordenação adequados deles e, depois, pela transformação ou sublimação da quantidade excessiva ou não utilizada.
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(6) A realização dessa integração pode ser bastante facilitada pela ativação de funções supraconscientes e pelo direcionamento deliberado para o Eu Transpessoal. Esses interesses mais amplos e de natureza superior agem como um ímã, que atrai para cima a "libido" ou energia psíquica investida nos impulsos "inferiores". Um tipo final de dificuldade que merece menção pode atingir o indivíduo em períodos nos quais o fluxo de energias supraconscientes é fácil e abundante. Se não for controlado com sabedoria, esse fluxo energético tanto pode perder-se numa excitação e numa atividade febris, como, pelo contrário, manter-se em demasia paralisado e inexpressivo, o que provoca o seu acúmulo e pode levar a sua alta pressão a causar problemas físicos. A solução apropriada é dirigir, de maneira propositada, construtiva ou harmoniosa, esse influxo de energia para a operação da regeneração interior, da expressão criativa e do serviço proveitoso.
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O Papel do Guia
Vivemos uma época em que um número cada vez maior de pessoas passa pelo despertar espiritual. Por essa razão, os terapeutas, conselheiros e outros profissionais assistenciais, assim como leigos, podem ser chamados a servir de recursos e de guias a pessoas que se acham nessa situação. Por conseguinte, pode ser útil considerar a função da pessoa passível de estar próxima de alguém submetido a esse processo, bem como alguns dos problemas nele envolvidos. Em primeiro lugar, não devemos perder de vista o fato central de que, embora possam ter bastante semelhança exterior, e até uma aparente identidade entre si, os problemas que podem acompanhar as várias fases da Auto-Realização e os problemas da vida normal têm causas e significações muito distintas, devendo ser tratados de maneiras correlativamente diferentes. Em outras palavras, a situação existencial em cada caso é não somente outra, como, num certo sentido, oposta. As dificuldades psicológicas da pessoa comum costumam ter um caráter regressivo. Esses indivíduos não conseguiram fazer alguns dos ajustes interiores e exteriores que constituem o desenvolvimento normal da personalidade. Diante de situações difíceis, responderam com reversão a formas de comportamento adquiridos na infância, ou jamais ultrapassaram de fato certos padrões infantis, quer os reconheçam como tais, quer os racionalizem. Por outro lado, as dificuldades advindas da tensão e do esforço nos vários estágios da Auto-Realização têm, como eu disse antes, um caráter especificamente progressivo.
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(7) Elas se devem ao estímulo gerado por energias supraconscientes, pelo "impulso vindo de cima", pelo chamado do Eu, tendo como determinantes particulares o conseqüente conflito entre essas energias e os aspectos "médios" ou "inferiores" da personalidade. Jung descreveu a crise de forma marcante: Ser "normal" é uma esplêndida idéia para os fracassados, para todos os que ainda não conseguiram sua adaptação. Mas para pessoas dotadas de uma capacidade bem maior do que a da média, para quem jamais é difícil alcançar o sucesso e cumprir a sua parte na obra do mundo - para essas pessoas, limitar-se a ser normal representa o leito de Procusto, o tédio insuportável, a esterilidade e o desespero infernais. Em conseqüência, há tantas pessoas que ficam neuróticas porque são apenas normais, como há pessoas que o são porque não podem tornar-se normais. É claro que o modo de ajudar esses dois grupos distintos de pessoas deve ser totalmente diferente. É provável que a ação apropriada para o primeiro grupo seja não somente insatisfatória como perniciosa para o segundo. O destino das pessoas do primeiro grupo é duplamente difícil se elas são guiadas por quem não compreende nem sabe avaliar as funções supraconscientes, que ignora ou nega a realidade do Eu e a possibilidade da Auto-Realização. Esse guia pode ridicularizar as incertas aspirações superiores da pessoa ou persuadi-la a reforçar a couraça da personalidade contra a insistente batida do Eu Transpessoal. Isso pode agravar a condição, intensificar a luta e retardar a solução. Por outro lado, um guia de inclinação espiritual, ou que ao menos entenda as realidades e realizações superiores e tenha simpatia por elas, pode ser de grande ajuda ao indivíduo quando este, como é costumeiro, ainda estiver no primeiro estágio, o da insatisfação, da agitação e da busca inconsciente. Se este tiver perdido o interesse pela vida, se a existência cotidiana não o atrai, se ele estiver procurando alívio em direções erradas, indo e vindo por becos sem saída, e se ainda não vislumbrou a realidade superior, a revelação da causa real do seu problema e a indicação da solução indesejada, do feliz desfecho da crise, podem constituir um apoio precioso na geração do despertar interior, que é, por si só, a principal parte da resolução. O segundo estágio, da excitação emocional e da exaltação - em que a pessoa pode ser levada por um entusiasmo excessivo e cultiva a ilusão de ter conseguido uma realização permanente - requer uma delicada advertência de que o seu estado de bênção é necessariamente temporário e uma indicação das vicissitudes que a esperam. Isso a preparará para o início da terceira etapa, que costuma envolver, como vimos, uma reação dolorosa e, por vezes, uma profunda depressão, à medida que a pessoa "desce" de sua experiência superior. Se tiver sido advertido de antemão, o indivíduo poderá evitar muitos sofrimentos, dúvidas e desânimos. Se não tiver contado com essa espécie de alerta, pode receber do guia muita ajuda, configurada na confirmação de que a sua condição é temporária, e de forma alguma permanente ou desesperadora como ele se sente compelido a crer. O guia deve declarar com insistência que o recompensador resultado da crise justifica a angústia - por mais intensa - por que ele passa. Podemos dar-lhe grande alívio e encorajamento ao citarmos exemplos de pessoas que passaram por uma provação semelhante e saíram dela. No quarto estágio, durante o processo de transmutação - que é o mais longo e mais complicado -, o trabalho do guia é correspondentemente mais complexo. Alguns dos seus aspectos importantes são:
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• Esclarecer o indivíduo sobre o que de fato acontece dentro dele e ajudá-lo a encontrar a atitude correta.
• Ensiná-lo a controlar sabiamente e dominar, mediante o uso habilidoso da vontade, os impulsos vindos do inconsciente, sem reprimi-los por meio do medo ou da condenação.
• Ensinar-lhe as técnicas de transmutação e sublimação de energias agressivas e sexuais. Essas técnicas são a solução mais eficaz e construtiva de muitos conflitos psicológicos.
• Ajudá-lo no reconhecimento e na assimilação apropriados do influxo de energias do Eu e dos níveis supraconscientes.
• Ajudá-lo a expressar e a usar essas energias no amor e no serviço altruísticos. Isso tem especial validade no combate à tendência de introversão e de autocentração excessivas que costumam manifestar-se nesse e em outros estágios do autodesenvohimento.
• Guiá-lo pelas várias fases da reconstrução de sua personalidade em torno de um centro interior superior, ou seja, na realização de sua psicossíntese espiritual.
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(8)Ao longo deste artigo, enfatizei o aspecto mais difícil e doloroso do desenvolvimento espiritual, mas não se deve concluir disso que quem está no caminho da Auto-Realização esteja mais propenso a ser afetado por distúrbios psicológicos do que outros homens e mulheres. O estágio de sofrimento mais intenso muitas vezes não ocorre. Em muitas pessoas, esse desenvolvimento se realiza de maneira gradual e harmoniosa, de modo que as dificuldades são superadas e os vários estágios percorridos sem reações severas de qualquer espécie. Por outro lado, as desordens emocionais ou sintomas neuróticos da pessoa comum costumam ser mais sérios, mais intensos e difíceis de suportar e de tratar terapeuticamente do que os vinculados com a Auto-Realização. É em geral difícil tratar deles de modo satisfatório porque, como os níveis e funções psicológicos superiores dessas pessoas ainda não foram ativados, há pouco a que recorrer para mostrar o valor de suportar os sacrifícios necessários e aceitar a disciplina requerida para fazer os devidos ajustes. Os problemas físicos, mentais e emocionais que surgem no caminho da Auto-Realização, por mais sérios que pareçam, não passam de reações temporárias, subprodutos, por assim dizer, de um processo orgânico de crescimento e de regeneração interiores. Portanto, ou desaparecem espontaneamente passada a crise que os causou ou cedem com facilidade ao tratamento adequado. Além disso, os sofrimentos decorrentes de períodos de depressão, de refluxo da vida interior, têm a abundante compensação dos períodos de renovado influxo de energias supraconscientes e da antecipação da liberação e do aprimoramento da personalidade inteira, a serem produzidos pela Auto-Realização. Essa visão é a mais potente inspiração, o alívio infalível e uma fonte constante de força e de coragem. Portanto, como dissemos, o mais importante é relembrar essa visão com a maior vivacidade e a maior freqüência possíveis. Um dos grandes serviços que podemos prestar a quem labuta no caminho é ajudar as pessoas a manter diante dos olhos a visão como o seu objetivo sempre presente. Por conseguinte, a pessoa poderá antecipar e ir experimentando de forma crescente o estado de consciência do indivíduo Auto-Realizado. Trata-se de uma condição caracterizada pelo júbilo, pela serenidade, pela segurança interior, pelo sentido de calma força, de claro entendimento e de amor radiante. Em seus aspectos mais elevados, trata-se da realização do Ser essencial, da comunhão e da identificação com a Vida Universal.
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"retirado do livro: Psicossíntese; de Roberto Assagioli."

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