Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta de Jung enviada ao Pastor Max Frischknecht em 08/02/1946.
Prezado Pastor,
[...] Li com interesse e prazer seu estudo cuidadoso sobre as visões aterradoras do beato Bruder Klaus e agradeço de coração. Concordo plenamente com seus comentários até o ponto em que levanta a questão sobre o fundamento transcendental da visão. Sua alternativa é "Deus metafísico" ou "o próprio inconsciente" do Bruder Klaus. Este é o caput draconis [cabeça do dragão]! Inadvertida e sub-repticiamente o senhor me imputa uma teoria que venho combatendo há dezenas de anos, isto é, a teoria de Freud. Como se sabe, Freud deriva a "ilusão" religiosa do "próprio" inconsciente do indivíduo, portanto do inconsciente pessoal. Há razões empíricas que contradizem este ponto de vista. Eu as reuni na hipótese do chamado inconsciente coletivo. O inconsciente pessoal caracteriza-se pelo fato de que seus conteúdos são formados pessoalmente e são ao mesmo tempo aquisições individuais que variam de pessoa para pessoa, tendo cada qual o seu "próprio" inconsciente. O inconsciente coletivo, porém, apresenta conteúdos que são formados pessoalmente apenas em grau ínfimo e, no essencial, em grau nenhum; não são aquisições individuais, mas são essencialmente os mesmos em toda parte e não variam de pessoa para pessoa. Este inconsciente é como o ar que é sempre o mesmo em toda parte, que é respirado por todos e a ninguém pertence. Os conteúdos (chamados arquetípicos) são condições prévias ou esquemas da constituição psíquica geral. Eles têm um esse in potentia [ser em potência] e in actu [no ato], mas não in re [como coisa], pois como res [coisas] já não são o que eram, mas tornaram-se conteúdos psíquicos. São em si imperceptíveis, não representáveis (pois antecedem toda representação), em toda parte e "eternamente" os mesmos. Por isso só existe um inconsciente coletivo que é idêntico a si mesmo em toda parte, do qual todo o psíquico recebe sua forma antes de ser personalizado, modificado, assimilado, etc. por influências externas.
Para tornar mais compreensível este conceito um tanto difícil, gostaria de trazer um paralelo da mineralogia, isto é, a chamada estrutura do cristal. Esta estrutura representa o sistema axial do cristal. Na solução-mãe ela é invisível, como se não existisse, mas ela existe, agregando-se primeiramente os íons ao redor dos pontos axiais (ideais) de intersecção e, depois, as moléculas. Há somente uma estrutura do cristal para milhões de cristais da mesma composição química. Nenhum cristal individual pode falar de sua estrutura, pois ela é a única e a mesma precondição de todos (e nenhum deles a realiza perfeitamente!). Ela é a mesma em toda parte e "eternamente".
O paralelo teológico é a idéia da imagem sempre igual de Deus. Só existe uma imago Dei que pertence à razão de ser de todos. Não posso falar da "minha" imago Dei, mas apenas da imago. Ela é o princípio da formação do ser humano, uma e a mesma, imutável e eterna. [...]
Nunca afirmei que a visão de Deus do beato Bruder Klaus tenha provindo do inconsciente pessoal, mas antes daquela - poderíamos dizer - esfera misteriosa de fatores suprapessoais subjacentes à pessoa humana. Pelo fato de esta esfera ser anterior ao homem e ser uma conditio sine qua non [condição sem a qual não é possível] de sua natureza psíquica, permito-me chamar esta "alma" (ou qualquer nome que tenha) "divina", em oposição à "humana", pois mesmo os teólogos não hesitam em conceber a imagem sempre igual de Deus como uma imago Dei, portanto, como divina. À "simples" alma humana está agora presa esta imago Dei que complica de certa forma a simplicidade. [...]
Com elevada consideração
(C.G. Jung)
2 comentários:
Postar um comentário