Texto de Luís Paulo B. Lopes
Há uma série de visões diferentes sobre a questão do herói em psicologia analítica. Jung considerava o herói como sendo uma imagem da energia psíquica em seu movimento de regressão e progressão. Na perspectiva de Jung, o mitologema do herói seria fundamental para a compreensão de todo e qualquer confronto entre o eu e o inconsciente, não sendo possível localizar de forma exclusiva a constelação deste arquétipo em um único período cronológico da vida de um indivíduo, já que estaria relacionado aos processos de ampliação de consciência que ocorrem ao longo de toda a vida. Já Neumann, relaciona o herói ao desenvolvimento do complexo do eu e ao desenvolvimento da consciência na humanidade, partindo da perspectiva de que a ontogênese repete a filogênese, isto é, de que o desenvolvimento arquetipicamente determinado do indivíduo segue as mesmas trilhas que o desenvolvimento da consciência se deu na humanidade de modo geral. Talvez deva ser creditada à Neumann, graças ao livro "A criança", a relação feita entre os mitos de heróis e a passagem da adolescência à idade adulta. Outros autores pós junguianos seguiram esta mesma linha de raciocínio ao associarem o herói com o masculino imaturo, como Robert Moore e David Gillette. Hillman, finalmente, problematizou a questão do herói, e através de sua análise, o destronou do status que goza na contemporaneidade. Em psicologia arquetípica, falar em heroico é quase o mesmo que dizer conquista à força. A abordagem de Hillman, que traz a bela imagem do cultivo da alma como se fosse um cuidado paciente de um jardim, passou a considerar o heroico quase como algo antinatural e prejudicial ao desenvolvimento saudável. Como se fosse um ímpeto colonizador que não estaria de acordo com a atitude paciente e delicada que temos que ter para o cultivo da alma. O herói em Hillman cai de sua posição semidivina para ser identificado com o ego usurpador da multiplicidade arquetípica da alma.
O herói contemporâneo, retratado de tantas formas no cinema e na literatura, parece de fato ser como o herói egóico de Hillman. Mas é importante notarmos que o mitologema do herói foi alterado de forma considerável em nosso imaginário contemporâneo, e o motivo para esta alteração é exatamente o ideal individualista, materialista e imperialista do século XXI, a hybris de nosso zeitgeist. O que então mudou nas estórias de heróis da atualidade? Pode parecer um pequeno detalhe, mas no fundo faz toda a diferença. A anomalia do herói contemporâneo é não necessitar de ajuda divina ou sobrenatural. Trata-se de alguém que abraça uma causa coletiva e resolve por conta própria, sem ajuda de ninguém, mas através de seus próprios méritos; assim como Édipo fez quando derrotou a Esfinge. Os heróis da atualidade são individualistas, aclamados pelo coletivo (celebridades), colonizadores que conquistam a “rosa da imortalidade” através da força bruta. Um retrato de uma cultura inflada em que o homem pretende usurpar o trono do deus que está morto, como Nietzsche anunciou. Este herói é um ideal coletivo do indivíduo perfeitamente realizado em nossa sociedade; ideal esse buscado pelas individualidades em uma corrida insana onde as pessoas se atropelam em um frenesi infantil, e que no fundo parecem ter como intento ser plenamente amadas e aceitas. E sem percebermos, somos impelidos a sermos aquilo que não somos. Tendo isso em vista, a única conclusão que posso chegar é que sem os aspetos transpessoais, sejam divindades ou animais falantes (psicopompos, guias da alma), o herói contemporâneo acabou se transformando em anti-herói; pois ao invés de ser conduzido a ser quem realmente é, acaba sendo conduzido a ser quem não é.
Somente tendo em vista esta imagem distorcida do herói, concordo com Hillman que o heroico é uma atitude egocentrada e incompatível com o trato paciente que devemos ter para cultivar a alma. E somente nesse sentido concordo com Moore e Gillette que o herói seria uma imagem do masculino imaturo, já que estaria focado na conquista do mundo típica da juventude ou da primeira idade adulta. Talvez umas das poucas imagens contemporâneas que fazem jus ao herói mítico são os super-heróis dos quadrinhos e desenhos animados, pois aqui ainda está preservada a dimensão do fantástico. Os poderes destes heróis são sobre humanos, seja porque foram picados por uma aranha (homem aranha) ou porque na verdade são alienígenas (super homem). Mas há até mesmo heróis de quadrinhos que não dependem de nenhuma força sobrenatural, como o Batman que é apenas um cara rico que pode criar equipamentos hightech. Um triunfo do ego! Penso ser fundamental distinguirmos o anti-herói contemporâneo do herói mítico, já que levam a caminhos totalmente opostos. O livro monumental de Joseph Campbell intitulado “O herói de mil faces” é um trabalho fundamental para compreendermos a anomalia que o herói sofreu no imaginário contemporâneo, que talvez seja indicativo de uma cultura em decadência, uma cultura em que o significado da vida é dado coletivamente como “conquiste para que tenha algum valor”; e na qual a verdadeira tarefa heroica é ultrapassar sua miséria de significado para viver uma vida que faça sentido. A análise de Campbell é importante pois utiliza mitos e lendas de heróis de todos os cantos do mundo, de dezenas de culturas, para chegar ao mitologema central. Não vou me estender sobre o diagrama da aventura do herói de Campbell pois somente quero chamar atenção, para esta reflexão, à questão dos guias e ajudantes sem os quais o herói não seria capaz de completar sua aventura. Sem os psicopompos o herói simplesmente se perde; não adquire os instrumentos necessários para enfrentar os perigos ou não encontra o caminho de volta pra casa.
Se algum dia você estiver em um conto de fadas e um pássaro falante te indicar alguma direção, é melhor segui-la, pois a direção oposta sem dúvida nenhuma irá te levar à ruína. Ícaro morre justamente por não ouvir os conselhos do pai (mentor). Ícaro sim é um exemplo do masculino imaturo, autocentrado, com aspirações maiores daquilo que pode suportar, que não é capaz de se relacionar com o aspecto positivo do Senex (o mentor) e por esse motivo morre, isto é, não chega a ser um herói. É um aborto de herói. O ego simplesmente não sabe o caminho a seguir e se perde facilmente em sua unilateralidade; se não trabalhar junto com o inconsciente não conseguirá nada além de sua destruição. Pois foi isso que o imaginário contemporâneo fez, o herói não deu ouvido aos pássaros, pegou o caminho errado e triunfou no final! Uma armadilha para aqueles que buscam a vida almejada pela coletividade, a vida de sucesso, dinheiro e conquistas que não se sustenta pois é miserável em significado. Se enraizar no mundo é importante no desenvolvimento individual no período da juventude, mas como Jung adverte, esta “solução [adaptação ao mundo exterior] dos problemas da juventude, restrita apenas ao que é possível alcançar, também só é válida temporariamente, e no fundo dura muito pouco” (JUNG, OC 8/2, § 771). Tão logo descobriremos, assim como Édipo, que nosso triunfo se transformará em maldição, pois “quanto mais nos aproximamos do meio da existência e mais conseguimos nos firmar em nossa atitude pessoal e em nossa posição social, mais nos cresce a impressão de havermos descoberto o verdadeiro curso da vida e os verdadeiros princípios e ideais do comportamento. Por isto, é que os consideramos eternamente válidos e transformamos em virtude o propósito de permanecermos imutavelmente presos a eles [...]” (JUNG, OC 8/2, § 772). Eis que chega a necessidade da tão dolorosa renúncia de tudo aquilo que conquistamos para que possamos dar o próximo passo. A renúncia é especialmente dolorosa pelo fato de nossas conquistas no sentido da adaptação ao coletivo nos conferirem valor enquanto pessoas, e de nós mesmos acreditarmos equivocadamente que esses valores, cujo estandarte carregamos, são a “rosa da imortalidade”.
Atravessar esse momento difícil é uma jornada heroica que nada tem a ver com juventude e com egocentrismo, e muito pelo contrário exige maturidade, humildade e renúncia. Há uma confusão entre herói e guerreiro na literatura junguiana, talvez por conta dos heróis gregos muitas vezes serem guerreiros conquistadores. E penso que esse seja um dos motivos pelos quais foram feitas relações entre herói e egocentrismo, já que a conquista estaria relacionada supostamente a uma postura unilateral do ego através da força. Mas ainda assim a imagem do guerreiro não poderia ser relacionada ao ego, a não ser através de uma leitura literalizada; de modo que nem mesmo isso justificaria a relação entre herói e egocentrismo. Talvez a confusão esteja na identificação do herói com a hybris, o descomedimento, um ato inflado contra os deuses. De fato a leitura de Hillman sobre o herói condiz com sua hybris, e concordo com sua análise de que vivemos em uma cultura em constante hybris. Penso ser exatamente isso que justifique a imagem distorcida do herói contemporâneo, ou o que chamamos aqui de anti-herói. O erro de Hillman, entretanto, é confundir a hybris do herói com o herói em si mesmo. Pois a hybris é um aspecto importante do herói para que triunfe em sua aventura, mas pode tornar-se mortal se for levada além do tempo certo. Edinger, pensando sobre a inflação enquanto conceito análogo à idéia de hybris, nos ajuda a problematizar essa questão. Pois, segundo afirma, a inflação por um lado seria fundamental para que a consciência se diferenciasse do inconsciente, mas que por outro lado poderia se tornar destruidora caso permanecesse por tempo demasiado. Assim sendo, o herói de Hillman é um herói em constante hybris, o que sem dúvida nenhuma o transformaria em anti-herói, já que em hybris o herói fica cego e surdo, incapaz de ouvir os pássaros. Mas esse é um estado temporário, e não a característica definidora do herói,
A hybris é também um ato de audácia, de transgressão sem o qual seria impossível passar de uma fase para outra, mas é um erro confundi-la com egocentrismo, embora em muitos casos pareça ser exatamente idêntica. Há um sem número de heróis cuja hybris não significa colonização do mundo ou do outro, mas tão somente reflete confiança. Os heróis dos contos de fada, por exemplo, são bastante diferentes da caricatura de herói egoísta (anti-herói) que passamos a confundir com o herói. Outros exemplos são Sidarta Gautama (Buda) e Jesus (Cristo). Heróis que são capazes da renúncia. Esse pra mim é o segundo passo do herói, que fica muito bem exemplificado no mito de Édipo. Pois enquanto que em Édipo Rei (a única peça de Sófocles usada por Freud), o herói impelido pela hybris, sem ouvir os desuses e fugindo do próprio destino conquista o trono de Tebas, acaba descobrindo que sua recompensa heroica é uma maldição. O maldito percebe que nunca fora de fato um herói, mas alguém que fugia de si mesmo através da conquista do mundo. Já em Édipo em Colono, o herói, que agora é de fato herói, deve encarar o destino. Pois é aqui que vemos o herói, deposto do trono, amaldiçoado, banido do reino, cego dos dois olhos, consciente das profundas feridas (o parricídio e o incesto); passa a aceitar sua condição de mendigo, começa aprestar atenção aos deuses e passa a seguir o desígnio que estes lhe atribuem. Uma mudança radical, de uma postura egocentrada que conquistou o mundo, para uma postura alinhada com os deuses que conquistou a morte através da renúncia. E é assim que morre (para renascer?) se tornando fonte de sorte para Atenas que o acolhe. Somente no segundo momento do mito, que ele de fato se torna herói; só quando renuncia à atitude egocentrada que o orientou até aquele momento. Antes ele era como o anti-herói, pois não ouvia os pássaros e confiava somente em si próprio, gabou-se inclusive por ter matado a Esfinge somente através do próprio intelecto (sem saber que seria levado à cama da própria mãe), sem ajuda dos deuses; e com isso o que conquistou foi sua maldição. Os heróis da renúncia devem abrir mão daquilo que conquistaram na primeira etapa de suas vidas, trata-se de uma renúncia dolorosa e consciente daquilo que pensavam que eram, daqueles aspectos que os constituíam, mas que não são mais adequados. Nesse caso, é a sabedoria a recompensa da aventura, que não pode ser conquistada através de uma postura egóica, mas somente quando o ego “reconhece que não é senhor em sua própria casa” e passa a ouvir as “vozes” transpessoais que o orientam para a morte. Uma imagem bastante diferente do herói celebridade contemporâneo, ou não?
Um comentário:
Texto muito bom e pertinente. A questão da Hibrys vejo como constituindo a própria figura do Herói na atualidade. Heróis que não convencem pois precisam de mais heróis, mais poderes, mais efeitos etc etc etc. A diferença é que você parte do arquétipo em direção ao fenômeno. Penso no meu caso que a vivência arquetípica do Herói iria perpassar na realidade o anti-herói, como aquele que nega um pseudo egocentrismo. Como nas tragédias em que os heróis sofrem e até morrem por algo maior do que eles. Os heróis de hoje não tem pelo que lutar! É força pela força, poder por poder. Acho que os heróis antigos tinham traços de guerreiros pois havia muitas guerras, hoje seriam vistos como colonizadores talvez. Históricamente Cristo é o arquétipo central mesmo.
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