Texto de Luís Paulo B. Lopes
Os mortos vivos são habitantes do imaginário humano pelo menos desde a Mesopotâmia, a primeira civilização da humanidade. Tabuletas de argila encontradas entre o Tigre e o Eufrates (rios no território do atual Iraque) falavam de rituais para apaziguar as “almas” dos antepassados, que negligenciados após a morte (sem os ritos apropriados), seriam responsáveis por uma série de moléstias, incluindo aquelas que hoje consideramos psicológicas. Ao longo do tempo, outros ritos fúnebres foram criados levando em conta a possibilidade dos mortos retornarem à vida, como os sepultamentos em caixões de madeira lacrados, por exemplo. Mortos vivos habitaram também o imaginário da Europa medieval. Diversas foram as formas que assumiram, desde mortos que levantavam de seus túmulos até as Sucumbos, demônios femininos que seduziam as pessoas em seus sonhos para roubar-lhes energia vital. As Sucumbos talvez tenham sido o protótipo do vampiro contemporâneo, que ao invés de sêmen, sugam sangue como fonte de energia vital, mas que ainda são associados à sexualidade. O Drácula de Bram Stoker foi um clássico do fim do século XIX que alcançou em cheio a alma do mundo ocidental, tendo se tornado referência para os vampiros que seriam criados desde então, até os dias de hoje.
O fato é que os mortos vivos são personagens do imaginário humano pelo menos desde os primórdios da civilização. Independente da cultura, do tempo e da religião, havia o morto vivo habitante do mundo imaginal, em uma série de formas diferentes e muitas vezes relacionados a alguma forma de maldição familiar. No cenário contemporâneo, filmes, séries de televisão, animações e livros sobre zumbis e vampiros fazem muito sucesso, isto é, continuam nos fascinando. O Drácula ganhou inúmeras versões na literatura e no cinema. Os zumbis, criaturas que se levantam da morte com um apetite insaciável pela carne dos vivos, também capturaram o imaginário contemporâneo. Talvez o mais importante filme sobre essas criaturas tenha sido “A noite dos mortos vivos” (Night of the living dead) de 1968, e desde então o interesse sobre os mortos que se levantam do túmulo só parece aumentar. O sucesso da série de televisão “The walking dead” mostra que os mortos vivos continuam ocupando lugar de honra em nosso imaginário até os dias de hoje, pelo menos desde a origem da civilização e possivelmente bem antes disso.
Assim como ocorre com qualquer imagem arquetípica que “habita” o mundo imaginal, os mortos vivos são continuamente reatualizados através da imaginação criativa, das estórias de horror e de nossos sonhos. É inclusive bastante comum que o mitologema do morto que retorna à vida para sugar a energia vital ressurja nos sonhos contemporâneos, fato esse que reforça a tese de sua importância significativa para a alma. Há aparições oníricas que reúnem os elementos presentes na literatura e no cinema contemporâneos e outras formas menos reconhecíveis, mas sempre arrumam alguma forma imagética para afirmarem que existem de fato. Segue um sonho (publicado com autorização) de um jovem de vinte e cinco anos que ilustra uma aparição de mortos vivos:
“Estava em um apartamento com um grupo de pessoas desconhecidas. Sabíamos que um grupo de zumbis invadiria o local e nos preparamos para lutar. Havia armas de fogo em nosso poder e um homem do exército que estava conosco construiu uma grande metralhadora utilizando objetos que estavam no apartamento. Quando os zumbis chegaram, lutamos e derrotamos todos. Como num déjà vu, a cena voltou ao inicio. Sabíamos que os zumbis subiriam ao apartamento e que a batalha agora seria mais difícil. Deixei a porta dupla do apartamento aberta e sentei-me no controle da metralhadora, apontando-a para o corredor onde estava o elevador. Um garoto de aproximadamente sete anos saiu do apartamento para o corredor e, um zumbi da mesma idade surgiu para matá-lo. Eu precisava matar o zumbi, mas sabia que a metralhadora era muito poderosa e poderia matar o menino acidentalmente. Cuidadosamente e receoso, disparei e matei o zumbi antes que alcançasse o menino. Logo em seguida, a porta do elevador abriu e uma multidão de zumbis correu em minha direção. Nesse momento me dei conta de que estava sozinho e havia possibilidade de não conseguir matar todos. Disparei a metralhadora e consegui matar todos, exceto dois que chegaram muito próximos a mim. Um deles era meu pai e o outro era eu mesmo, mas com aparência de mortos-vivos e a intenção de me devorar. Disparei a metralhadora sem pestanejar, primeiramente em meu pai. Nesse momento ocorreu-me que poderia ser difícil para algumas pessoas matar o próprio pai, mesmo zumbificado, mas que para mim não seria problema. Em seguida atirei em seu filho, eu mesmo em estado zumbificado. Ambos caíram na minha frente, mas meu pai falou: ‘agora é tarde, ele conseguiu injetar em você’. Vi que, em minha perna havia uma seringa com sangue contaminado que o zumbi, que era eu mesmo, havia cravado em mim”.
Não considero adequado tentar interpretar tal sonho de forma descontextualizada, isto é, desconsiderando todos os elementos subjetivos, mas algumas analogias interessantes podem ser feitas partindo dele. O sonho traz elementos arcaicos associados ao mitologema dos mortos vivos, isto é, traz imagens de uma espécie de maldição familiar (assim como nas tabuletas de argila da Mesopotâmia), pois é o próprio pai do sonhador que retorna do túmulo para devorá-lo ou infectá-lo. É como se algum aspecto paterno que um dia já esteve na luz da consciência, mas que fora dissociado para a escuridão do inconsciente, retornasse de forma ameaçadora. No sonho, um homem do exército, para enfrentar os zumbis que invadirão o apartamento, cria uma metralhadora utilizando somente materiais encontrados em seu interior. A metralhadora acaba se mostrando o objeto decisivo para evitar que o eu onírico seja devorado vivo. O homem do exército é decisivo no desfecho do sonho. Ele está no interior do apartamento (casa como metáfora do indivíduo), no mundo dos vivos, como se fosse um aspecto consciente determinante para o confronto com o sombrio. Chama atenção o fato do homem do exército ter construído a arma com objetos já existentes no apartamento, como se o eu tivesse recursos próprios para o confronto com o mundo das trevas do inconsciente, que está prestes a emergir. Sem esses recursos, certamente o desfecho teria sido trágico.
Outro elemento interessante a ser notado é a criança, que muitas vezes é relacionada à possibilidade de transformação, como se fosse um aspecto novo que ainda não está totalmente maduro. A morte da criança, se houvesse ocorrido, poderia ser vista como uma espécie de aborto, como se morresse algum aspecto que ainda não nasceu plenamente, ou como se a possibilidade do novo morresse e restasse somente a petrificação (ou zumbificação). Se partirmos dessa perspectiva, o sonhador foi capaz de impedir tal situação. Mas ressalto a impossibilidade de interpretar sonhos de forma descontextualizada, pois diversas analogias poderiam ser feitas em torno da criança, outra possibilidade seria vê-la como aspectos infantis dissociados que não foram capazes de se desenvolver, o que levaria a análise para um caminho totalmente diverso (daí a importância do nível subjetivo que não está sendo levada em conta aqui). Nossa intenção, portanto, é somente utilizar as imagens como possibilidade de reflexão através da analogia. Partindo da perspectiva assumida inicialmente, o ato de salvar a criança pode ser extremamente significativo, já que miticamente, isto é, somente no nível objetivo, é constantemente relacionada à possibilidade do novo, o Puer.
O eu onírico teve que confrontar uma horda de zumbis que foram derrotados com tiros da metralhadora improvisada que construiu utilizando objetos que já existiam no apartamento. Mas dois zumbis conseguiram se aproximar, os dois que eram verdadeiramente significativos, o pai do sonhador e ele mesmo, como se fosse uma imagem espelhada, mas em estado zumbificado. Ora, o que é um zumbi se não algo que morre e retorna a vida de forma monstruosa e sombria? O eu onírico é capaz de matar o pai sem pestanejar, mas lhe ocorre que para muitas pessoas isso poderia ser difícil. Tal drama que ocorre ao eu onírico está bastante presente no imaginário contemporâneo sobre os zumbis, isto é, na reatualização contemporânea da imagem arquetípica do morto vivo. Em várias estórias, algum personagem hesita em matar um familiar zumbificado e acaba sendo devorado e transformado em zumbi, outros mantém os familiares zumbificados, amarrados ou trancafiados, e continuam convivendo com eles, pois são incapazes de matá-los. Assim como convivemos com nossos complexos, meio vivo e meio mortos, que ora estão no mundo dos mortos, ora emergem na luz da consciência. Outras vezes, somos confrontados com nossos mortos interiores, que como deuses renegados, retornam exigindo tributos, e se não formos capazes ou não tivermos recursos para o confronto, podemos ser devorados vivos e zumbificados, podemos ficar restritos a estarmos vivos como que mortos. Mas no sonho que estamos pensando, o eu onírico não pestaneja, atira para matar o pai e sua imagem espelhada tenebrosa. Acerta os dois, mas não os mata imediatamente, quando é informado pelo zumbi, que um dia havia sido seu pai, que aquele outro eu monstruoso tinha injetado em sua perna uma seringa infectada com sangue de zumbi. O eu onírico é informado pelo pai zumbificado: “agora é tarde, ele conseguiu injetar em você”. Este é o momento em que os zumbis revelam ao eu onírico o motivo de estarem ali, a saber, infectá-lo com sangue de zumbi. É como se o processo tenebroso que vem da profundeza das trevas revelasse sua finalidade, e mais, anunciasse que conseguiu cumprir seu propósito!
O eu onírico salva a criança, mata o pai que retorna dos mortos e mata ele mesmo que estranhamente surge como imagem espelhada, mas zumbificada; evita assim ser devorado, mas é infectado com uma seringa com sangue zumbi, evento que se revela como sendo a finalidade de todo aquele drama. Será que o eu onírico falhou depois de todos os esforços? Tendo em vista todas as proezas, e principalmente o fato de ter salvado a criança, parece que se saiu bem no confronto com os habitantes ktônicos do mundo imaginal. Outra imagem do imaginário contemporâneo que nos ajuda a pensar este sonho são os meio mortos vivos, presentes tanto no cinema quanto na literatura. Há os dampiros, filhos de vampiros com mortais (ao mesmo tempo possuindo sangue dos vivos e sangue dos mortos vivos), que muitas vezes tornam-se exímios caçadores de vampiros, pois possuem recursos naturais superiores aos dos demais mortais. Igualmente no que diz respeito aos zumbis, há aqueles que foram infectados por sangue zumbi, mas mostraram-se imunes, tornando-se esperança para a futura reconstrução da humanidade pós-apocalíptica. Outros são infectados, mas ao invés de se tornarem zumbis, desenvolvem habilidades sobre-humanas, assim como os dampiros. Esses meio mortos vivos tornam-se espécie de heróis, com características sobre-humanas assim como podemos observar no mitologema do herói (timé e areté).
Assim como nas estórias de nossa imaginação, em nosso psiquismo, para haver qualquer mudança deve haver integração. Não há mudança de atitude quando simplesmente se vence o inconsciente, que aliás não pode ser vencido; quer dizer, para ocorrer qualquer transformação deve haver uma espécie de canibalismo da consciência em relação ao inconsciente. A consciência deve integrar em sua luz, as trevas do inconsciente. Será que a infecção do eu onírico pode ser vista em analogia à uma espécie de transformação? Isso depende se ele sobreviverá à infecção! Mas a fala do pai zumbificado, quando revela seu objetivo (infectar o eu onírico), nos permite supor que o objetivo do processo é simplesmente misturar a energia vital do mundo dos vivos com a do mundo dos mortos, para formar um novo ser híbrido, uma espécie de dampiro, um herói. Esse motivo pode ser visto em analogia com o conceito de função transcendente, isto é, de que qualquer mudança, para que aconteça, deve levar em conta igualmente a consciência e o inconsciente. Podemos assim, supor que o destino do eu onírico era ser infectado, e isto era inevitável. Mas havia o risco de ser devorado vivo e de que a criança fosse morta, riscos esses que foram evitados graças aos recursos que o eu onírico dispunha. Tendo o eu onírico vencido os perigos, o processo realiza seu propósito, a mistura do sangue dos mortos vivos com o sangue dos vivos; uma imagem contemporânea tenebrosa da coniunctio oppositorum.
É importante ressaltar que o presente sonho é muito mais do que essa reflexão parcial que fizemos dele. Sempre que fazemos uma escolha devemos estar conscientes de que renunciamos a várias outras possibilidades. E ao nos debruçarmos sobre algum sonho ou estória, com finalidade teórica, somos obrigados a fazer uma escolha. Nossa análise teve somente o objetivo de aprofundar o sonho, sem tentar desvendar o mistério infindável do símbolo. Uma análise somente a título de reflexão, que não leva em consideração nenhum elemento subjetivo como esta, serve somente para levantar questões, mas nunca para fechar significados. Consideramos importantes estas breves considerações finais para deixarmos claro que o relacionamento com as imagens oníricas deve ser pessoal e envolver nossa totalidade, isto é, não deve se basear exclusivamente na interpretação nem tão pouco unicamente no pensamento; pois só assim a imagem será capaz de operar sua finalidade em nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário