Texto retirado do livro "O Sagrado" de Rudolf Otto
Este será, então, nosso intento no tocante à peculiar categoria do sagrado. Detectar e reconhecer algo como sendo "sagrado" é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso. Embora também tanja outras áreas, por exemplo, a ética, não é daí que provém a categoria do sagrado. Ela apresenta um elemento ou "momento" bem específico, que foge ao acesso racional no sentido acima utilizado, sendo algo árreton ["impronunciável], um ineffabile ["indizível"] na medida em que foge totalmente à apreensão conceitual.
1. Essa afirmação seria liminarmente falsa se o sagrado tivesse o sentido utilizado em certo linguajar filosófico e geralmente também no teológico. Acontece que nos habituamos a usar "sagrado" num sentido totalmente derivado, que não é o original. Geralmente o entendemos como atributo absolutamente moral, como perfeitamente bom. Kant, por exemplo, chama de vontade santa a vontade impelida pelo dever e que, sem titubear, obedece à lei moral. Só que isso seria simplesmente a vontade moral perfeita. Nesse sentido também se fala de dever "sagrado" ou da "santa" lei, mesmo quando o que se quer dizer não é nada mais do que sua necessidade prática, seu caráter normativo geral. Só que esse uso do termo heilig [sagrado ou santo] não é rigoroso. Embora o termo abranja tudo isso, nossa sensação a seu respeito subentende claramente algo mais, que precisamos especificar agora. Na verdade, o termo heilig e seus equivalentes linguísticos semítico, latino, grego e em outras línguas antigas inicialmente designava apenas esse algo mais, não implicando de forma alguma o aspecto moral, pelo menos não num primeiro momento e nunca de modo exclusivo. Como para nós hoje santidade sempre tem também a conotação moral, será conveniente, ao tratarmos aquele componente especial e peculiar, inventar um termo específico para o mesmo, pelo menos para uso provisório em nossa investigação, termo esse que então designará o sagrado descontado do seu aspecto moral e - acrescentamos logo - descontado, sobretudo, do seu aspecto racional.
O elemento de que estamos falando e que tentaremos evocar no leitor está vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne, sem o qual nem seriam religião. Presença marcante ele tem nas religiões semitas, e de forma privilegiada na religião bíblica. Ali ele também apresenta uma designação própria, que é o hebraico qadôsh, ao qual correspondem o grego hágios e o latino sanctus, e com maior precisão ainda sacer. Não há dúvida de que em todos os três idiomas esses termos, no ápice do desenvolvimento e da maturidade de idéia, designam também o "bom", o bem absoluto. Então usamos o termo "heilig / santo" para traduzi-los. Entretanto esse "santo" só paulatinamente recebe esquematização ética de um aspecto original peculiar que em si também pode ser indiferente em relação ao ético, podendo ser considerado em separado. E nos primórdios do desenvolvimento desse aspecto não há dúvida de que todos aqueles termos significam algo muito diferente de "o bem". Os intérpretes contemporâneos certamente admitem isso de um modo geral. Com razão, a interpretação do qadôsh como "bem" é considerada uma reinterpretação racionalista do termo.
2. Portanto é necessário encontrar uma designação para esse aspecto visto isoladamente, a qual, em primeiro lugar, preserve sua particularidade e, em segundo lugar, abranja e designe também eventuais subtipos ou estágios de desenvolvimento. Para tal eu cunho o termo "o numinoso" (já que do latim omen se pode formar "ominoso", de numen, então, numinoso), referindo-me a uma categoria numinosa de interpretação e valoração bem como a um estado psíquico numinoso que sempre ocorre quando aquela é aplicada, ou seja, onde se julga tratar-se de objeto numinoso. Como essa categoria é totalmente sui generis, enquanto dado fundamental e primordial ela não é definível em sentido rigoroso, mas apenas pode ser discutida. Somente se pode levar o ouvinte a entendê-la conduzindo-o mediante exposição àquele ponto da sua própria psique onde então ela surgirá e se tornará consciente. Pode-se reforçar esse procedimento apresentando algo que se lhe pareça ou mesmo seja tipicamente oposto, que ocorra em outros âmbitos psíquicos conhecidos e familiares, para então acrescentar: "Nosso X não é isto, mas tem afinidade, é o oposto daquele outro. Será que agora não lhe ocorre?". Ou seja, nosso X não é ensinável em sentido estrito, mas apenas estimulável, despertável - como tudo aquilo que provém "do espírito".
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