Texto retirado do artigo Não nascer: alguns traços da imagem arquetípica do aborto de Roberto Gambini; publicado originalmente na Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, nº3. 1985.
[...] não está escrito no livro do destino que tudo o que germina nascerá. No reino da psique não há garantias, só possibilidades. O que começa poderá nascer ou não, independente de nossa vontade - a não ser que de fato apliquemos um abortivo, porque assim quisemos. Um grão cai na areia e seca; outro brota sobre espinhos que o engolem; um terceiro cai na terra e cresce. O exagerado valor que consagramos à idéia de achievement e produtividade nos fazem encarar a vida "certa" como uma desenfreada arrancada para o sucesso. Criar, produzir, frutificar, disseminar, expandir - no fundo, uma fantasia de poder e de plenitude material para compensar o tremendo vácuo espiritual de nossa era. Desse perspectiva, não criar é o maior dos infortúnios; abortar, no corpo ou na psique, o maior sinal de derrota. "Crescei e multiplicai-vos", fora de seu contexto simbólico e religioso, transformou-se num chavão de multiplicação anárquica e desregulada, da superprodução inflacionária, da superpopulação da Terra. Não é à toa que a doença de nossa época é o câncer, a multiplicação letal.
Há um tempo de nascer e um tempo de esperar. Num tudo que reluz é ouro, e nem tudo que se inicia precisa ir até o fim só porque foi iniciado. A natureza cria e destrói, faz e desfaz, inicia e interrompe e seus desígnios estão além de nosso alcance. Não há porque ser sentimental: nem todo aborto é uma tragédia. Do mesmo modo, nem tudo o que fracassa em elevar-se à percepção consciente precisa ser visto como perda inestimável. Quando natural, o aborto compensa a cupidez do ego que acredita tudo poder controlar e possuir, e o que se gostaria que nascesse não nasce. Nosso útero não prende. Nosso solo não vitaliza. Há algo que não vai. Não é hora. Não é o caso. Não estamos em sintonia com a fonte elementar. Não adianta insistir. Não somos nós que controlamos as portas de entrada e saída desta vida.
Mas isso não basta. Às vezes algo novo deve imperiosamente nascer e somos nós mesmos o agente abortífero. Aí o caso é outro. Porque aquilo que não nasce, quando o momento era chegado, torna-se destrutivo e passa a corroer por dentro. Mas o que é isso, o que é esse momento crucial?
No plano psíquico, que é o que nos interessa aqui, um nascimento se refere sempre à integração de um conteúdo inconsciente pela consciência, que em consequência se amplia. Esse conteúdo tenta emergir uma, duas vezes e aborta. A consciência não consegue abrir lugar para ele, suas malhas estão muito apertadas. Pode ocorrer que um sonho indique que isso ocorreu, e a pessoa, se estiver em análise, ficará desesperada, ou perguntará - "mas o que devo fazer?" e nada adianta. Não adianta o analisando assumir uma atitude de pseudo-transformação, fabricando gestos e ideologias com a intenção de convencer a si mesmo e aos demais que livrou-se desse ou daquele problema. Na verdade, nada genuíno nasceu. O que aconteceu foi um aborto, ou vários, e o que fazer? Deve o analista sentir-se fracassado e o analisando perder a esperança? O processo instintivo e natural deve ser respeitado e compreendido mesmo quando leva a um aborto desse tipo. O desenvolvimento da psique não é uma corrida de Fórmula I ou uma pesca milagrosa em que todos levam um prêmio. É uma pesca, sim, mas paciente, humilde, religiosa. Como diziam os velhos alquimistas, é uma obra que dará um fruto Deo concedente, se Deus quiser. Mas há um momento em que esse peixe, esse conteúdo até então desconhecido do inconsciente que subir à tona e está dotado de toda a energia necessária para tanto, suficiente trabalho já foi feito e no entanto a consciência se recusa a recebê-lo. Esse aborto custa caro, porque pode ser que a chance não se apresente pela segunda vez. É preciso portanto saber julgar e diferenciar. Nem tudo precisa nascer; mas quando chega o momento do Advento reclamado pela alma, é melhor ter pronta a manjedoura.