Texto de D. Júnior Viana Costa. Email para contato: juniorvianac@oi.com.br
Carl Gustav Jung (1875 – 1961), o mais famoso discípulo dissidente de Sigmund Freud, afastando-se do último por divergências pessoais e teóricas em relação ao campo da Psicanálise, defende a tese de que nossa psique é constituída de uma camada inconsciente mais profunda do que o inconsciente pessoal proposto por Freud, o que Jung veio a denominar de Inconsciente Coletivo ou Inconsciente Supra-pessoal. Embora Freud tenha em certo momento discorrido sobre os “resíduos arcaicos” e “padrões filogenéticos”, como nos lembra Jung no “O Homem e seus símbolos”, Freud não desenvolveu nenhum conceito específico sobre o tema. Jung afirma que a psicanálise, enquanto teoria psicológica, se restringe a uma única representação arquetípica, o Complexo de Édipo.
Para Jung, “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são 'cum grano salis' os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos.”
É necessário observar que tal “conhecimento inato” e tais “experiências” são armazenadas de modo peculiar no inconsciente coletivo, e não em forma de “dados diretamente copiados”, como poderia parecer à primeira vista. Se apresentam em modelos típicos de comportamento e de percepção, motivos mitológicos, religiosos etc. As unidades do inconsciente coletivo são os arquétipos, modelos estruturais do aparelho psíquico. A hipótese da existência de um Inconsciente Coletivo permeia campos diversos, como a psicologia, ciências humanas - como a antropologia e as ciências da religião - e mesmo a biologia.
O inconsciente coletivo seria a região da psique onde se abrigam as formas estruturais da psique. Os chamados arquétipos ou dominantes, as estruturas semi-autônomas que atuam no inconsciente coletivo, que não existem enquanto representações imagéticas a priori (embora o próprio Jung as tenha chamado de imagens primordiais no início da teorização), mas que são formas sem conteúdo que representam vários estágios, necessidades e vivências psicológicas típicas do homem. Os arquétipos existem como entidades “virtuais”.
Por meio de seus estudos e no percurso de seu amadurecimento intelectual, C. Jung, filho de um pastor protestante, procurou defender a tese apresentada acima utilizando como fonte de pesquisa os símbolos coletivos e individuais presentes nas religiões, nos sonhos, nas alucinações e delírios psicóticos e nos mitos. Fazendo diversas viagens para a Índia, América e África, Jung colheu em diversas culturas dados necessários para confirmar ou dar sustentação para suas teorias sobre o psiquismo humano. Carl Jung usou abundantemente as produções artísticas e oníricas de seus pacientes e as suas próprias como objetos de pesquisas. Estudou, sobretudo, as produções de seus pacientes psicóticos.
Após a rápida introdução apresentada, que julguei necessária para que leitores não familiarizados com o tema possam compreender, gostaria de falar especificamente, antes de seguir adiante, sobre uma das produções artísticas de Jung, que tentou, através da pintura, retratar as imagens interiores que lhes surgiram em sonhos, visões e estados provocados pela técnica de Imaginação Ativa. Refiro-me ao personagem Filemôn, que teria se manifestado através de seus famosos sonhos e visões, muitos dos quais relatados em sua obra Líber Novus ou O Livro Vermelho (livro postumamente publicado); onde há inclusive um longo diálogo com a figura do mago Filemôn.
“Filemon, da mesma forma que outros personagens da minha imaginação, trouxe-me o conhecimento decisivo de que existem na alma coisas que não são feitas pelo eu, mas que se fazem por si mesmas, possuindo vida própria. Filemon representava uma força que não era eu. (...) Percebi com clareza que era ele, e não eu, quem falava. (...) Foi assim, que pouco a pouco, me informou da objetividade psíquica e da realidade da alma.” (Jung – O livro vermelho)
Sobre a capacidade imagética do inconsciente podemos ler: “Na medida em que eu conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar a imagens que se ocultavam nas emoções, eu readquiria a paz interior. Se eu tivesse permanecido no plano das emoções possivelmente eu teria sido dilacerado pelos conteúdos do inconsciente. Ou, talvez, se os tivesse reprimido teria sido fatalmente vítima de uma neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo. Minha experiência me ensinou o quanto é salutar , do ponto de vista terapêutico, tornar conscientes as imagens que residem por detrás das emoções.” (Jung – O livro vermelho)
Durante o período de elaboração do Livro Vermelho, cerca de 14 anos, salvo engano, Jung passa por uma fase de auto-análise a qual ele denominou de “confronto com o inconsciente”. A misteriosa figura de Filemon, um velho com asas de pássaro, mostra-se a Jung como uma espécie de mentor espiritual em um momento crítico de sua existência.
Filemôn se encaixa como um exemplo arquetípico do velho sábio, e é por essa linha de pensamento que seguiremos. Arquétipo que possui também um lado que podemos chamar de charlatão, ou seja, a sombra do próprio arquétipo.
Outro aspecto interessante do conceito de Inconsciente Coletivo que eu gostaria de compartilhar com os leitores é a sua proximidade com outro conceito largamente usado pelos esoteristas ocidentais da Idade Média e do séc. XIX, como Eliphas Levi e Papus. Considero arriscado em certa medida fazer tal analogia, tendo em vista as diversas distorções que a teoria de Jung sofre nas mãos daqueles que o consideram uma espécie de profeta moderno da Psicologia. No entanto, há idéias de fundo arquetípico segundo o próprio Jung, como o Maná, ou energia primitiva, que encontra paralelos em diversas culturas e, no caso a seguir, julgo que se trata de uma idéia arcaica em uma versão diferente. Alertados sobre a questão, daremos seqüência ao texto.
Trata-se do que alguns esoteristas chamam de “Luz Astral”. Segundo Levi, em seu livro “A Chave dos Grandes Mistérios”:
“A luz astral em que o sono nos mergulha é como um oceano onde flutuam inumeráveis imagens, restos das existências naufragadas, miragens e reflexos daquelas que passam, pressentimentos daquelas que vão nascer. Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai−nos uns para os outros ou distancia−nos uns dos outros, submete um às vontades do outro fazendo−o entrar em seu círculo de atração, restabelece ou perturba o equilíbrio na economia animal por suas transmutações e seus eflúvios alternativos, recebe e transmite as impressões da força imaginária, que é no homem a imagem e a semelhança do verbo criador, produz, assim, os pressentimentos e determina os sonhos.“
“O pensamento humano cria o que imagina; os fantasmas da superstição projetam sua deformidade real na luz astral e vivem dos próprios terrores que os conceberam. Esse gigante negro que estende suas asas do oriente ao ocidente para ocultar ao mundo a luz, esse monstro que devora as almas, essa aterrorizante divindade da ignorância e do medo, numa palavra, o diabo, ainda é, para uma multidão de crianças de todas as idades, uma aterradora realidade”.
Segundo o que foi proposto acima por Eliphas Levi, podemos entender o diabo cristão como uma formação simbólica inspirada nos modelos do inconsciente coletivo, um arquétipo da sombra, tendo em vista que o símbolo encarna o arquétipo.
“O diabo é uma variante do arquétipo da sombra, isto é, do aspecto perigoso da metade obscura, não reconhecida pela pessoa” (JUNG).
Estamos analisando o diabo em termos de Psicologia Analítica, e não pretendemos de forma alguma analisá-lo do ponto de vista teológico cristão, o que estaria além de meu interesse e conhecimento.
Além da Luz Astral, o Pleroma, conceito que Jung recebeu através de Basilides (outra manifestação personificada do seu mundo interior), guarda também proximidade com a Luz Astral dos esotéricos.
Diz Jung:
"O Pleroma é, ao mesmo tempo, o princípio e o fim dos seres criados. Ele os penetra, como a luz do sol penetra em qualquer lugar, penetra o ar... Somos, entretanto, o próprio Pleroma porque somos parte do eterno e do infinito. Mesmo no seu ponto o mais insignificante o Pleroma não tem fim, é inteiro, desde que pequeno e grande são qualidades contidas nele. Ele é este nada o qual é tudo e é continuidade!". Parece haver na biologia a mesma noção de pleroma, embora usado de forma específica dentro da disciplina.
Podemos encontrar em Levi algo semelhante:
“Falamos de uma substância propagada no infinito”; “No infinito, essa substância única é o éter ou a luz etérea”; “Uma única fonte, uma única raiz de luz jorra e abre−se em três ramos de esplendor. Um sopro circula em volta da terra e vivifica, sob inumeráveis formas, todas as partes da substância animada." Hinos de Sinésio, hino 11. “É assim que, segundo Hermes, o que está no alto é como o que está embaixo, a mesma força que dilata o vapor contrai e endurece o gelo; tudo obedece às leis da vida inerentes à substância primeira; essa substância atrai e repele e coagula−se e dissolve−se numa constante harmonia; é dupla; é andrógina; abraça−se e fecunda−se; luta, triunfa, destrói, renova, mas nunca se abandona à inércia, pois a inércia seria a morte para ela. É essa substância primeira que se designa na narrativa hierática do Gênesis, quando o verbo dos Eloim faz a luz ordenando−lhe que seja. Eloim diz: Que seja a luz, e a luz foi.”
Observo, apenas como curiosidade, que nas traduções bíblicas comuns, a palavra Eloim é traduzida por Deus, o que não deixa de ser, em certo sentido, uma tradução inapropriada, pois a palavra Eloim representava originalmente uma pluralidade de deuses, e não necessariamente um Deus. Mas se pensarmos em um deus tri-uno, como muitos ramos do cristianismo defendem (não todos), a tradução poderia se manter deuses sem maiores complicações e sem “incômodos teóricos” para boa parte dos teólogos cristãos.
No fim dos anos sessenta e década de setenta, o ocidente testemunhou o ressurgimento de tradições esotéricas e de culturas religiosas que haviam sido marginalizadas, ou lançadas para a Sombra coletiva, durante séculos de imposição ou preponderância da cultura religiosa cristã, tanto pelo Catolicismo Romano, como pelo protestantismo, de grande influência nos EUA (país que fora o berço dos movimentos juvenis de contracultura).
Durante os anos da assim chamada contracultura, vertentes espirituais como o xamanismo indígena, cultos de origem africana, disciplinas esotéricas como a Alquimia (sobre a qual Jung dedicou bastante atenção, sobretudo em Psicologia e Alquimia), o Tarô, a Astrologia, e escolas místico-filosóficas “importadas” do oriente, como a meditação transcendental de Maharishi Mahesh e o movimento Hare-Krishna compunham o quadro caótico e criativo da espiritualidade da contracultura.
Como lembra um autor acadêmico do tema, Luiz Lima Boscato, em sua tese de doutorado, “Vivendo a sociedade alternativa: Raul Seixas no panorama da contracultura jovem”, havia na contracultura um elemento mítico importante, o “Anarquismo Espiritual”; uma rejeição as autoridades religiosas tradicionais, e, ao mesmo tempo, a adesão em massa a novos gurus, muitos deles indianos, como Krishnamurti (ex-membro da Sociedade teosófica de Madame Blavatsky) e o controvertido Osho.
Um intelectual que também realizou diversos estudos importantes sobre religiões e xamanismo foi o historiador romeno Mircea Eliade, o qual nutria declarada admiração por Jung e por sua obra. Ambos pensadores têm em comum o fato de suas idéias ainda serem olhadas ainda com certa desconfiança ou mesmo com total descrédito nos círculos acadêmicos formais, pelos psicólogos e psicanalistas no caso de Jung, e pelos antropólogos no caso de Eliade. Há um livro de Eliade sobre a explosão ocultista no ocidente, o Ocultismo, Bruxaria e Correntes culturais, onde o mesmo analisa de forma crítica tal fenômeno.
Um trecho da entrevista (em espanhol) de Mircea com Jung e que nos será útil:
-Yo soy un psicólogo. No me ocupo de lo que trasciende el contenido psicológico de la experiencia humana. Ni siquiera me planteo el problema de saber si es posible semejante trascendencia, pues en todos los casos lo transpsicológico ya no es asunto del psicólogo. Ahora bien, en el plano psicológico, me enfrento con experiencias religiosas que poseen una estructura y un simbolismo susceptibles de ser interpretados. Yo considero que la experiencia religiosa es real, es verdadera. Compruebo que semejantes experiencias pueden «salvar» el alma, pueden acelerar su integración e instaurar el equilibrio espiritual. Como psicólogo compruebo que el estado de gracia existe: es la perfecta serenidad del alma, el equilibrio creador, fuente de energía espiritual.
A explosão mística do período das décadas de sessenta e setenta influenciou artistas mundialmente conhecidos como George Harrison, guitarrista dos Beatles, que sob influência do hinduísmo gravou, em 1970, a famosa canção “My Sweet Lord”, um dos clássicos da música pop mundial. Além disso, o famoso festival de Woodstock, símbolo máximo do período da contracultura, realizado em 1969, foi chamado por alguns de Festival de Aquarius, uma referência à era astrológica Aquariana, temática comum da era Hippie. Festival este que viria a ser exposto no filme de 1970 de mesmo nome.
Neste conturbado período de efervescência sócio-cultural, o uso de substâncias psicoativas tornou-se uma forma de expansão da consciência para milhões de jovens do mundo inteiro, que buscavam novas formas de percepção e novas experiências com a consciência, aprisionada em modelos racionais. O uso de drogas se alastrou desde então, vindo da época a popularização das mesmas. O uso se espalhou também através da influência de músicos como os Beatles, Jimmi Hendrix e de autores como Carlos Castaneda e Timothy Leary, o que gerou preocupação nas autoridades mundiais e “alertou o mundo” para o “grave problema das drogas”.
Sobre a influência exercida pelos Beatles em tal contexto diversificado, cito a curiosidade de Jung ser uma das muitas figuras presentes na capa do álbum Sgt Peppers, ao lado de personagens as mais diversas, como o filósofo Karl Marx, o mago inglês Aleister Crowley e o guru Yogananda (um dos grandes difusores da Yoga no ocidente).
O atual e indiscriminado uso de drogas, característica de nossa sociedade pós-moderna, dissociada, histérica e industrial, situada em um contexto diverso da maioria dos jovens dos anos sessenta e setenta, pode indicar, além de uma face puramente hedonista de nossa natureza, uma necessidade inconsciente de estabelecer contanto com as “fontes primárias da psique”, das quais nos fala Jung, tendo em vista que os recursos historicamente usados pelo homem com tal finalidade, como a religião, os ritos e a mitologia, foram e vêm sendo cada vez mais deixados de lado pela mentalidade pós-moderna. Sendo substituídas por “mitologias” produzidas pela grande mídia com o objetivo de nos imprimir idéias de caráter ideológico e consumista, atrofiando assim o que poderíamos chamar de nossas “capacidades simbólicas naturais”.
A revolução sexual, que fora influenciada pela teoria freudiana e por outros psicanalistas como o psiquiatra Wilhelm Reich, foi outra característica marcante dessas décadas, com ecos que se fazem ouvir em nossos dias e em diversos campos da experiência humana (educação, cultura etc). Observando que o sexo, ou melhor, o ato sexual em sentido mais amplo, era um elemento importante em alguns cultos pré-cristãos, o que de certa forma também dialoga com o ressurgimento da espiritualidade pagã na pós-modernidade: a sacralização do sexo (embora possa soar contraditório para aqueles que entendem sacralidade apenas no sentido cristão da palavra). Devemos nos lembrar do Tantra indiano. Além disso, o esoterismo pop que desembocou no “movimento” New Age tem as suas raízes ou difusão aumentada consideravelmente em tal período da história recente, movimento que hoje se converteu, em boa parte, em um mercado de fadas de jardim, duendes, incensos, batinhas indianas e outras inutilidades pseudo-místicas mais.
A Psicologia Transpessoal, vertente ecumênica do pensamento psicológico que teve como fonte uma das fontes de inspiração o pensamente de Jung, além de outros pensadores das mais diversas áreas, surge no mesmo período propondo uma psicologia universal, mais abrangente do que a que até então era feita. Colhendo em diversos ramos do conhecimento inspiração para sua abordagem, inclusive no que conhecemos hoje como parapsicologia, no budismo e também na moderna física quântica. O estudo de estados mentais incomuns através de enteógenos e práticas como a meditação são características marcantes da Psicologia Transpessoal e são alguns de seus campos de estudo.
Como já relembrado por muitos estudiosos, dentre os quais Eliade, o uso de substâncias psicoativas esteve e ainda está ligado em muitas culturas ao aspecto religioso e transcendente da mente humana. O contato com realidades incomuns através desses meios é encontrado ao longo dos séculos e em diversas partes do globo. Seja na América Latina ou do Norte, na Índia, os xamãs dessas culturas fizeram e fazem uso de tais meios para acessar a “realidade divina” ou o “plano astral”. Houve durante a contracultura a proposta e pesquisas que defendiam o uso do LSD para fins terapêuticos.
O Soma sagrado dos Hindus é um dos exemplos mais conhecidos do uso ritual de plantas psicoativas, citado na antiga literatura védica (coleção de textos sagrados do vasto e complexo hinduísmo) e no Bhagavad-Gitâ (inspiração da música Gita de Paulo Coelho e Raul Seixas).
Temos no Brasil o fenômeno religioso recente ligado ao culto do Santo Daime. O uso de tais substâncias, segundo Papus e outros autores ocultistas, guarda um grande risco para o praticante quando feito de forma irresponsável e sem o conhecimento real do que encerra o seu uso; o que pode ter conseqüências funestas como a morte e a loucura:
“Sob o ponto de vista mágico, o uso de todas as drogas aqui mencionadas encerra uma boa dose de perigo. Elas aumentam o império do ser impulsivo sobre a vontade e é preciso uma autoridade muito forte sobre si mesmo para não se deixar dominar por estas substâncias, que são a encarnação da alma do mundo na matéria.” (Tratado elementar de Magia Prática - Papus).
Fazemos uso de autores não acadêmicos no intuito de explanar a opinião dos mesmos sobre tais práticas, e não para legitimar qualquer opinião ou fazer apologia aos seus ensinamentos, muito menos advogar qualquer forma de misticismo. A Psicologia junguiana se debruça sobre tais temas, mas não para imprimir nos mesmos selos de validade ou falsidade, mas com o objetivo de estudar a psicodinâmica envolvida.
Pesquisas recentes sobre a DMT (dimetiltriptamina), substância conhecida popularmente como a “molécula do espírito”, têm trazido nova luz sobre a questão da espiritualidade e o uso histórico de “drogas”. Tal substância, encontrada em algumas plantas e produzida espontaneamente pelo corpo humano, atuaria, principalmente, na Glândula Pineal, que, segundo Descartes, embora seja uma idéia ultrapassada, seria o ponto de união do corpo e da alma. Há, porém, exageros fanáticos por parte de muitos místicos, new ages e congêneres em relação a DMT, assim como houve por parte dos teístas com a “descoberta” da partícula chamada de “A Partícula de Deus”, notícia que entupiu os sites criacionistas de “provas” de Sua existência. Mas a glândula pienal é antiga conhecida das religiões, sobretudo as orientais, vez ou outra chamada de terceiro olho ou o órgão responsável pela visão espiritual (ou seja, de realidades hiper-físicas).
Em um contexto de Globalização frenética e exportação de culturas, o Brasil recebe a influência da efervescência cultural promovida pela juventude rebelde do período. Tivemos nomes importantes da contracultura em terras tupiniquins, sendo o maior deles, sem dúvida alguma, o do roqueiro baiano Raul Seixas, além dos também baianos Tropicalistas, liderados por Gil e Caetano. Outros artistas brasileiros também mergulharam na onda mística impulsionada pela contracultura, como Jorge Ben Jor, sendo um dos seus discos mais conhecidos “A Tábua de Esmeralda” (referência ao famoso texto de Hermes Trismegistus, uma das bases mais importantes do esoterismo).
Outro nome da contracultura, embora nem sempre visto como tal, foi José Ramalho Neto, nascido em Brejo do Cruz, que viria a se tornar um dos mais consagrados artistas da nossa música. O compositor e cantor, conhecido pelo nome artístico de Zé Ramalho, em entrevista, recorda a importância que o filme Woodstook teve em sua visão de mundo, sendo de fundamental importância para as experiências que viria a ter depois.
A canção Avôhai, de Zé Ramalho, obra musical permeada por elementos autobiográficos e dotada de uma sonoridade característica da psicodelia brasileira, foi gravada em 1970, no auge da revolução contracultural. Avôhai é uma referência ao seu avô, que o criou depois que seu pai morrera durante a travessia de um açude no sertão. É a soma das palavras Avô e Pai, trata-se, portanto, de um neologismo. Zé Ramalho afirma que a música foi composta com a ajuda de seres extra-terrestres, como o fez em um show recente, o qual tive a oportunidade de assistir.
A sensação plástica despertada pela canção é raramente encontrada, sendo quase uma experiência de teletransporte ao universo ramalheano, povoado por paisagens sertanejas, discos voadores, seres mitológicos, profecias e misticismo. A canção foi composta sob efeito do cogumelo Amanita, que alguns associam ao Soma hindu citado mais acima.
Nas palavras do próprio compositor, leitor assíduo de Carlos Castaneda durante tais anos, podemos ler:
“Quando volto para a Paraíba, também faço minhas primeiras experiências com outra turma: a dos cogumelos alucinógenos. Pra começar: acho que nem deveria chamar cogumelo de droga. Não há o contato da mão humana. É tudo direto. Quando descobriram que tinha isso nos pastos do Nordeste houve uma espécie de busca por parte de minha geração. Tem um tipo de cogumelo específico que não vai intoxicá-lo. Nós, porém, éramos loco ma non troppo – antes, realizamos estudos com fotografias dos cogumelos para saber quais eram comestíveis e quais eram venenosos. No meu caso, foi uma coisa que me deu uma iluminação muito grande. Foi quando recebi a mensagem do "Avôhai". Avôhai é minha única música que posso dizer que teve uma espécie de mediunidade envolvida. Porque eu não pensei nela, ela me foi soprada”.
Zé Ramalho deixa transparecer na canção alguns elementos de sua experiência enteogênica: “Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor”, além de versos como “rebuscando a consciência, com medo de viajar até o meio da cabeça do cometa...”.
Em seu disco ao vivo de 2005, gravado no Olímpia – SP, Zé Ramalho comenta sobre a origem da canção Avohai:
“Enquanto o pessoal está preparando o palco para o próximo setting, eu falo um pouco a vocês sobre a origem do Avôhai. Essa palavra me foi revelada durante um momento muito especial da minha vida e ela vem acompanhando... tornou-se uma espécie de palavra-chave mística que abriu tantas portas pra mim e despertou a curiosidade e o encantamento de tanta gente.”
Uma das versões da música mais aplaudidas pela crítica encontra-se no disco Antologia Acústica (1997), um dos marcos da carreira do artista. Os sons marcantes de cítaras indianas e de viola caipira são as características que se destacam na releitura, unindo o oriente e o nordeste através da linguagem musical. O que podemos entender em uma interpretação livre como uma metáfora da união “espiritual” do oriente com o ocidente.
Procurando evitar ainda mais delongas históricas e preocupado em conter minha prolixidade incorrigível, chego em fim ao ponto central em que gostaria de expor a minha opinião sobre a proximidade de Filêmon com o Avôhai. Creio que a essa altura do texto já podemos perceber a similaridade existente entre a pintura de Jung, e o Avôhai descrito na canção do Zé Ramalho.
Através de versos como: “Um velho cruza a soleira de botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar”; “São os olhos, são asas, cabelos de Avohai”, pode-se estabelecer uma ligação no mínimo curiosa e sincrônica entre as duas produções artísticas. Além disso, as duas se ligam também pelo fato de sua fonte de inspiração serem incomuns: os chamados estados alterados ou holotrópicos da consciência. No caso de Jung, o processo de diálogo com as imagens oriundas do inconsciente, que fora por ele denominado de imaginação ativa (atenção conscienciosa aos conteúdos imagéticos do inconsciente), e, no caso de Zé Ramalho, o uso da Amanita.
Elementos curiosos da ligação entre os dois símbolos podem ser encontrados nas asas presentes tanto em Filemôn como no Avôhai, além do colar, que, embora não possamos ver claramente Filemon, podemos relacionar com uma espécie de lamparina presente nas mãos do mesmo. Seria necessário, porém, uma entrevista com o próprio Zé Ramalho para uma melhor compreensão do seu processo criativo, de sua história pessoal, mas como tal possibilidade é consideravelmente inviável, penso não são, por esse motivo, superficiais as proposições aqui apresentadas. Servem, ao menos, em minha opinião, como um exercício intelectual para os que se sentem despertados em seu interesse pelo tema, ainda distante das salas formais de psicologia.
Aos familiarizados com a Psicologia Analítica, é conhecido o fato de que os temas arquetípicos são contornos que representam os arquétipos, não são os arquétipos em si mesmos, que, segundo Jung, são formas sem conteúdo, sendo passíveis de contornos diversos. O arquétipo, sendo assim, não cria conteúdos, apenas organiza os elementos de forma típica, e forma em torno da experiência um símbolo. Como dito acima, o símbolo encarna o arquétipo, mas não é o arquétipo em si.
“Por símbolo não entendo uma mera alegoria ou sinal, mas uma imagem que descreve da melhor maneira possível a natureza do espírito obscuramente pressentida. Um símbolo não define nem explica. Ele aponta para fora de si, para um significado obscuramente pressentido, que escapa ainda à nossa compreensão e não poderia ser expresso adequadamente na nossa linguagem atual”. (Jung)
“O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta.” (Jung)
O famoso conceito de sincronicidade, proposto por Jung, pode ser resumido como eventos de coincidência significativa ou relações acasuais dotados de significado ou sentido. Cito no texto o conceito de sincronicidade não por acaso, e sim devido ao fato de o texto ter sido inspirado por um evento que considero como representante do que Jung entende por sincronicidade. Foi durante a escuta da canção que a figura de Filêmon se associou tão profundamente a ela (ao menos, falando baseado em minha experiência, no significado pessoal que a mesma teve para mim). Justamente quando pesquisava algo no material sobre Psicologia Analítica, no arquivo do computador.
"Há uma estreita relação entre acontecimentos interiores e exteriores de que vivemos. Relação que não pode ser explicada pelo princípio da causa e efeito, mas, no entanto, faz sentido para o observador". C. G. Jung e W. Pauli
No mais, agradeço aos leitores que suportaram a monotonia do texto até aqui.
AVÔHAI!
Domingos Júnior Viana Costa
6 comentários:
Jung tambem foi um um psicadelico basta não ser parvo para o ver esse desenho é do pai natal o rei dos escondidos os anjos seres vivos extradimensionais nada de mistico em estados alterados o cerebro como que apanha outras frequençias e assim podemos ver outras realidades esta é a verdade sobre a imaginação fantastica nada mais do que uma tv interdimençional .
Texto altamente elucidativo. Aprendi muito com ele. Gostaria de ler mais textos assim.
Muito bom! Gosto muito de Zé e amo Jung. Excelente analogia. Pra pensar.
Já ouvi Avôhai por diversas vezes, mas não sei porque na última semana algo espiritual nesta letra me fez pesquisar na net e achei este blogger fantástico, excelente para refletir. Entendi a música e por tabela alguns conceitos! Valeu.
Eu aprecio muito os conceitos de Jung, li diversos livros dele, entre eles, Psicologia e Alquimia. Este texto é muito bom, adentrando os conceitos da Psicologia Analítica, de Jung, e textos de grandes esoteristas, como Papus e Eliphas Levy, mencionando também o antropólogo Mircea Eliade, e o fato de que tanto Jung quanto Eliade não são bem aceitos pela comunidade acadêmica. Por fim, menciona Zé Ramalho e sua canção Avohai, com origem mediúnica, e estabelece paralelos entre o arquétipo Filemon de Jung e a figura criada por Zé Ramalho, Avohai.
Texto excelente! Muito bem colocadas, às suas ideias, e também às referências teóricas! Os conteúdos esotéricos estão descritos de forma facilitada, e as informações de jung, bem expostas.
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