Em homenagem ao dia do Saci (31 de outubro) trago esta obra prima de João Barbosa Rodrigues contando sobre o Saci do século XIX de Norte à Sul do país. O autor descreve as diferenças regionais desta personagem mítica tão presente no imaginário nacional. Este texto constitui joia raríssima para o estudo da alma brasileira.
Texto retirado do livro Poranduba amazonense de João Barbosa Rodrigues. Este livro foi publicado em 1890. Nesta época, as regras ortográficas da língua portuguesa eram diferentes das atuais. Tomei a liberdade de corrigir palavras do texto original para o português contemporâneo. Além disso, acrescentei entre colchetes, significados de algumas palavras pouco utilizadas na atualidade, que são restritas à regiões específicas do país ou que estão no idioma Tupi.
O civilizado, que muitas vezes não entende a pronúncia do sertanejo, que é o mais perseguido por ele [pelo Saci] em suas viagens, tem-lhe alterado o nome; já o fez Çacy-pererê. Saperê, Sererê, Sareré, Siriri, Matim-taperê, e até já lhe deu um nome português, o de Matinta-Pereira, que mais tarde talvez, terá o sobrenome da Silva ou da Matta.
Para conseguir seus fins, e fazer suas proezas, sem ser visto, quase sempre vive o Çacy [Saci] ou Maty metamorfoseado em pássaro, que se denuncia pelo canto, cujas notas melancólicas, ora graves ora agudas, iludem o caminhante que não pode assim descobrir-lhe o pouso, porque, quando procura vê-lo pelas notas graves, que parecem indicar-lhe estar o Çacy [Saci] perto, ouve as agudas, que o fazem já longe. E assim iludido pelo canto se perde, leva descaminho nunca vendo o animal.
Quando no Norte, os tapuyos, ouvem o canto de Maty-taperê, e no Sul, os roceiros ou os Kaipiras, o do Kaapora ou do Çacy-taperê; que o civilizado toma por Alma de caboclo, os velhos o esconjuram [lhe rogam pragas]; as crianças unidas conchegam-se ao colo das mães; estas, arrepiadas, olham para os pais, que tremem, mas não negam o fumo que espalham pelas cercas dos quintaes e pelas portas para que o Çacy [Saci] se cale, e se retire, levando com que matar o vício de cachimbar.
Quando não se apresenta aos viandantes sob a forma de pássaro, reveste-se da forma humana, e só (no Sul) ou acompanhado de sua mãe (Pará e Maranhão) percorre as ruas, entra pelos roçados, vai às casas de farinha; penetra nas senzalas; aterroriza os passageiros; rouba a mandioca; furta farinha e quebra os bejus no forno, proezas em que é destro no Rio de Janeiro.
No Amazonas e Pará é um kurumi [curumim] de uma perna só, de cabelos vermelhos, os quais a civilização transformou em barrete [tipo de chapéu] vermelho (Pará) sempre acompanhado de uma velha tapuya [índios que não falam o idioma Tupi. Em Tupi significa "inimigo", "forasteiro"] ou preta (tatámanha [mãe de fogo em Tupi]) vestida em andrajos que pela calada da noite, e mesmo de dia assovia dizendo: Maty-taperê!
É um tapuyosinho [ver a cima significado de tapuya] triste, como o são todos, e que nem evacua nem urina.
Vulgarmente só se apresenta sobre a forma de um pássaro, que se não vê, mas cujo canto se ouve e o seu esvoaçar se sente. Toma esta forma quando quer se ver livre dos rigores da mãe Tatámanha [mãe de fogo].
Querem alguns que o Maty-taperê [Saci] seja a velha e não o pequeno, porém o que é mais correto no vale amazônico é que esse pássaro fantástico seja a metamorfose do filho do Korupira [Curupira]. [...]
No Maranhão, o Maty-taperê [Saci] anda também acompanhado pela velha, a que dão o nome de Kaapora [em Tupi significa habitante do mato] (Caipora). [...]
Em Sergipe é um moleque muito preto, com carapuça de latão, que também para obter fumo para seu cachimbo faz as maiores estrepolias. Já esse mito aí está fundido com os contos portugueses do ciclo de Gargantua, e aparece no conto de Manoel de Bengala, referido em Coimbra, sob o título A bengala de quatro quitaes. [...]
A Kaapora já aí [no Ceará], em alguns lugares, não representa a mãe e sim o próprio Çacy [Saci], como em Sergipe. É um menino com uma urupema [espécie de peneira no idioma Tupi] na cabeça coberto por uma saia ou lençol, de sob a qual saem duas varas formando braços. [...]
Em Ilhéus (Bahia), o Maty ou Çacy [Saci], tem o nome de Kaapora, e dizem que onde se apresenta é sob a forma de cabocla moça, clara e bonita. [...]
No Rio de Janeiro [...] o Çacy-taperê [Saci], por uma síncope passou a ser saperê e que os negros fizeram sererê e siriri tomou a cor negra e usou o barrete vermelho, que os africanos recebiam nos armazéns do Vallongo, do Caju e nos das costas da Marambaia. Assim o Çacy [Saci] passou a ser molequinho coxo, ferido nos joelhos, porém mais vivo e mais ativo do que o caboclo. [...]
O Çacy [Saci] quando aí sai do mato não é para fazer propriamente malefícios, e se algum acontece, é resultado das suas molecagens. Só quando toma a forma de pássaro, torna-se agourento ou faz infeliz aquele que persegue, porque, então, querem que seja a alma de um caboclo transformado em pássaro; por isso o chamam também, como vimos, alma de caboclo. [...]
No centro e no norte de Minas Gerais, onde o elemento indígena não se deixou assoberbar pelo africano, o Çacy [Saci] aparece outra vez como um caboclinho de pés bifurcados fazendo as diabruras que faz o molequinho na mata do Rio, sempre de cachimbo no canto da boca, pitando o fumo filado aos pobres viajantes, e furtando a comida dos escravos pelas senzalas.
Nos terrenos auríferos [que produzem ouro] mora em geral nas betas [escavações profundas feitas nas rochas para se extrair ouro], nas catas [escavações profundas feitas no solo para se extrair ouro] abandonadas ou nas grunhas [concavidades nas serras] das montanhas, longe dos ribeirões, que não atravessa, por não gostar de água corrente; sai para correr os pastos e aí cavalgar os animais, levando em correrias toda a noite fazendo com que os pobres tropeiros de manhã os encontrem desabrigados.
Nas noites brumosas, quando os vales e os gupiaras [local onde crescem os campos altos] se cobrem com aquela névoa branca e floculosa, que, vista das serras, parece um mar de algodão batido, é quando ele gosta de perseguir os animais trançando-lhes as crinas e os escondendo para que os campeiros não os encontrem e curtam o frio da gelada madrugada campeando em vão a madrinha de sua tropa.
Que se transforma em homem e veste-se de rodaque [espécie de casaco masculino] para andar pelas casas de jogo, ou seduzir o sexo fraco, o afirmam muitos.
Que tem medo de esconjuros [de que lhe sejam rogadas pragas], de rosários e orações, sempre as velhas me disseram, e quando elas avistam alguma moça magra, pálida e triste, logo dizem: "é obra de Çacy [Saci]", porque afirmam, que as moças se apaixonam por ele, com ele se amancebam [tornam-se amantes], sendo a morte sempre a consequência desse amor criminoso. [...]
Em São Paulo (Itu, Campinas, etc.) perdendo o nome Çacy [Saci], toma o de negrinho pastorejo, e para deixar de fazer diabruras não se lhe dá fumo, mas sim velas, que, pelos campos, estradas e quintaes acendem quando dele querem obter proteção. É preciso dizer que aí, em vez de ser um porte-malheur [que trás má sorte], é antes milagroso. É crença que as velas que se acendem não se gastam, porque com o seu barrete vermelho as apaga para levá-la a seu uso.
Quando entra pela província de São Pedro do Rio Grande do Sul, é com o nome modificado em Negrinho do pastoreiro, é então um Gavroche [substantivo de travessuras em francês], que ninguém teme como a Kaapora, que as vezes também persegue os gaúchos no macegal das descambadas das coxilhas, montado nos baguaes [cavalos não castrados] sem aperos [arreamento]. [...]
Çacy [Saci] significa mãe das almas, como bem interpretou Baptista Caetano (hang-h-açã), e que concorda perfeitamente com as crenças amazônicas, onde tudo em todos os reinos da natureza tem uma mãe, (cy).
Taperê, deriva-se de tapeperê, de tape pe. no caminho, hê ou cê, sair, que por eufonia muda o c em r.
Çacy-taperê, que dizer a mãe das almas que sai nos caminhos ou nas estradas.
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