terça-feira, 28 de outubro de 2014

A psicologia junguiana e o resgate da alma brasileira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A alma brasileira não pode ser adequadamente circunscrita de forma exclusiva pela mitologia grega e pelo mito judaico-cristão. Somos um povo miscigenado, com fortes influências da cultura africana e indígena. Nossa cultura foi formada, literalmente pelo choque entre essas culturas. Apesar de nossa riqueza étnica e cultural, a história de dominação da cultura europeia tendeu a excluir nossas influências africanas e indígenas do debate acadêmico. Historicamente, os mitos, ritos e costumes destas culturas foram estudados por nossos etnólogos e antropólogos como culturas exóticas, mas somente raramente como constituintes fundamentais de nossa cultura, sempre presentes no aqui e agora. A psicologia junguiana no nacional tendeu, ao longo dos poucos anos em que floresceu no Brasil, a reproduzir as mesmas temáticas abordadas pelo pensamento europeu. Do ponto de vista arquetípico, as produções acadêmicas nacionais tendem a utilizar majoritariamente a mitologia grega e o mito judaico-cristão em suas amplificações. Não quero dizer que estes mitos não exerçam grande importância em nossa constituição cultural e psíquica, mas por outro lado é importante assumir que abordar cultura tão rica e complexa como a brasileira a partir desta perspectiva unilateral significa ignorar ampla parcela de nossa cultura; é ignorar ampla parcela de nossa alma. 

Somente recentemente a psicologia junguiana brasileira parece ter se ocupado de forma séria com a constituição complexa de nossa cultura, levando em conta as diversas influências étnicas e culturais que nos constituem enquanto brasileiros. Um exemplo do esforço nacional pelo resgate da alma brasileira foi materializado no primeiro volume da coleção “alma brasileira” publicado em 2014 pelas editoras Mauad X e Bapera. Esta coleção foi idealizada e planejada, segundo Oliveira (2014), a partir do “Colóquio: Psicomitologia Junguiana e Mitos Brasileiros” em novembro de 2011. O objetivo da coleção é introduzir de forma definitiva os mitos constituintes de nossa cultura, ainda vivos no imaginário brasileiro, no estudo de nossa alma sob a perspectiva da psicologia junguiana. Leonardo Boff em seu prefácio para o primeiro volume desta coleção, nos fala sobre a importância desta empreitada. Afirma ele que “diversa é a composição étnica, diferentes são as regiões geográficas do país e vigora um rico sincretismo em curso que, seguramente, vai moldar toda a cultura brasileira futura. É o que faz o Brasil complexo e desafiador” (BOFF in OLIVEIRA, p. 7, 2014). Este desafio a que se refere é fundamental para a compreensão e o resgate de nossa identidade cultural, que há séculos sofre de um abafamento dominador da cultura europeia e tende a desqualificar e excluir a África e a América pré-colombiana de sua reflexão sobre si própria. Resgatar nossas raízes enquanto cultura, isto é, aqueles nossos aspectos que foram negligenciados, equivale a reconstruir nosso futuro; reconstruir nossa identidade cultural. Ainda segundo Boff, “uma nação revela já maturidade quando começa a pensar a si mesma com um olhar próprio, mesmo quando se serve de um arsenal teórico vindo de fora mas filtrado pela nossa singularidade como povo” (Ibid: 7). Me parece que não só a psicologia junguiana brasileira, mas nossa sociedade de forma mais ampla, começa a atingir tal grau de maturidade que permite pensar sobre si mesma a partir da própria singularidade enquanto povo. Faz-se necessário que a psicologia analítica, sem negligenciar suas raízes europeias, comece também a valorizar a totalidade da cultura brasileira a fim de se aproximar de um entendimento mais original e radical sobre a alma brasileira; e consequentemente ajude na construção de uma identidade cultural fundamentada em suas próprias raízes, em sua totalidade. 

No campo político, faz-se sentir este mesmo movimento de resgate de nossas raízes africanas e indígenas para a construção de nossa identidade cultural. Um exemplo importante neste campo foi a lei 10.639 de 9 de Janeiro de 2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino sobre cultura Afro-brasileira nas escolas em território nacional, sejam públicas ou privadas e tanto no ensino fundamental quanto médio. Esta lei foi alterada cinco anos depois de sua publicação para formar a lei 11.645 de 10 de Março de 2008, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino tanto sobre cultura Afro-brasileira quanto Indígena em todas as escolas brasileiras. No entanto surgiram problemas, já que os professores deveriam ensinar algo que não aprenderam em suas próprias formações. E embora tenha se passado mais de dez anos desde a publicação da primeira lei, há dificuldades em sua implementação plena. O movimento em nossa sociedade que visa resgatar nossa alma, isto é, resgatar nossas raízes constituintes não se dá sem entraves e resistências de alguns segmentos sociais. Recentemente foi veiculada uma notícia que exemplifica bem este fato. O Ministério Público Federal, no ano de 2014, tentou remover vídeos que pregavam intolerância religiosa conta a Umbanda e o Candomblé do Youtube, mas a decisão do juiz responsável pelo caso determinou que crenças Afro-brasileiras não continham traços necessários para que fossem consideradas como religião. Segundo o entendimento do juiz a religiosidade Afro-brasileira não poderia ser considerada como religião, pois não havia um texto base como a Bíblia, a Torá ou o Alcorão. A decisão gerou grande repercussão pública e o juiz acabou voltando atrás em sua decisão. Tal fato é bastante emblemático, pois não se trata do ponto de vista de uma pessoa isolada. A decisão inicial do juiz é reflexo de toda uma história de dominação cultural que demonizou os deuses indígenas e os orixás africanos. E desde a colonização do Brasil, perseguiu e negligenciou estas culturas; que, no entanto permanecem vivas não só de forma periférica, nos terreiros de Candomblé ou no interior das escassas reservas indígenas, mas está no aqui e agora em nossa constituição cultural geral e nos processos de subjetivação de cada pessoa nascida neste solo.

O ponto de vista do juiz acima referido reflete o acontecimento histórico que tentou homogeneizar o cristianismo em 325 d.C. sob ordens do imperador romano Constantino. O Primeiro Concílio de Niceia definiu a lei canônica oficial do império romano, isto é, o livro sagrado oficial, e relegou à ilegalidade todas as formas de religiosidade cristãs que não se fundamentavam no ponto de vista definido nesta ocasião. Esse talvez tenha sido o início do longo processo de morte gradual do mito cristão. Cujo ponto ápice talvez tenha sido anunciado por Nietzsche enquanto arauto da morte de Deus. O fato é que o livro sufoca o mito, isto é, priva-o de seus pulmões, da possibilidade de constante reatualização através da tradição oral. Assim sendo, o mito se petrifica em uma forma definida que não acompanha a pulsação do tempo. No entanto, apesar da petrificação do mito cristão a partir do Concílio de Niceia, o imaginário da Antiguidade e do período medieval não tardou a encontrar formas de manter o mito vivo através de superstições e novas lendas, da alquimia, de novos dogmas e da livre imaginação do povo. Quero com isso chegar ao argumento do referido juiz de que as crenças Afro-brasileiras não poderiam ser consideradas como religião por não conterem um livro semelhante à Bíblia cristã. Em primeiro lugar, este pensamento reproduz o mesmo discurso etnocêntrico dos tempos da colonização a ter como base de referência a religiosidade cristã. Este argumento traz de forma implícita a ideia de superioridade da cultura europeia. Em segundo lugar, negligencia o fato de que é justamente a tradição oral que mantém os mitos vivos e pulsantes, assim como constatado por consagrados mitólogos como Joseph Campbell e Junito Brandão; e pelo próprio Jung.

É, portanto, à tradição oral brasileira que precisamos recorrer a fim de resgatar aqueles aspectos vivos de nossa alma que são diariamente sufocados pelo processo histórico de dominação cultural europeia. Nesse sentido, o Brasil ainda não conquistou a própria independência, já que não resgatou de forma ampla as próprias raízes, isto é, ainda desconhece quem realmente é. É por esse motivo, que a psicologia junguiana brasileira deve se voltar ao estudo da alma brasileira a partir dos riquíssimos mitos indígenas e africanos que ainda pulsam nesta terra. Trata-se de um objetivo amplo do resgate de nossas raízes para a construção de uma identidade cultural fundamentada em nossa totalidade.


OLIVEIRA, H. Mitos, folias e vivências. Rio de Janeiro: Mauad X; Bapera. 2014.

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