Texto retirado do livro "O livro do Puer" de James Hillman.
A função específica da psique, a subjetividade que experimenta e grava padronizando as experiências historicamente, que torna a história possível e é seu a priori, foi chamada de Clio. E Clio, como a primeira filha, tem relação especial com a mãe das musas, a lembrança. [...] O nome Clio significa glória, honra, celebração e é ela quem melhor lembra as ações dos heróis. Seu interesse não está nas notícias diárias da história de caso do mundo, ou aquilo que Mircea Eliade chamou de "tempo profano". Em vez disso seu interesse está naqueles momentos nucleares únicos, momentos heróicos através dos quais o arquétipo no centro da alma é revelado redimindo eventos da cegueira dos meros fatos. Assim como nós, indivíduos, estamos atados aos fatos e nossas histórias de caso pessoais por aquilo que lembramos de nossas vidas pessoais, também nossa cultura está viciada na história do tempo profano. Um vício exige cada vez mais, cada vez mais rápido. Muito de nossa inventividade serve meramente para fazer, reunir e reproduzir eventos. [...] Precisamos de mais "informação", temos menos tempo a perder. Alcançamos até uma "história instantânea", que Arthur Schlesinger defende chamando "História Contemporânea", onde tudo aquilo que acontece a todos no cenário público deve ser registrado e aquilo que é registrado deve ser publicado - e rápido. As profanas chroniques scandaleuses - as "profanidades" - dos heróis substituem a glória de Clio.
Na prática analítica aprendemos que uma compreensão arquetípica dos eventos pode curar a fascinação compulsiva com nossa história de caso. Os fatos não mudam, mas sua ordem recebe outra dimensão através de outro mito. Eles são experimentados diferentemente; ganham outro sentido porque são contados através de outro conto. [...] Portanto, a redenção do vício na história profana pode vir da mesma forma. Essa forma demonstraria outra organização arquetípica dos eventos pelos quais sofremos. Porém essa reorganização requer primeiro a mudança na própria memória, de maneira que a cada dia perguntemos não "o que aconteceu?", mas "o que aconteceu para a alma?". Para essa maneira de lembrar os eventos, a memória necessitaria retornar à sua reminiscência de idéias primordiais, à sua associação primordial com as raízes metafóricas da experiência humana. A memória assim transformada registraria primeiro as experiências da alma e apenas secundariamente os acidentes dos eventos. Ou, melhor dizendo, poderia tomar os eventos psicologicamente, ritualmente, não mais apenas sua vítima. Através dessa cura da memória, a própria Clio poderia ser libertada de sua fascinação com a história de caso do mundo e assim ser restaurada ao seu papel de registradora e celebrante daquilo que tem significado. [...]
Essa compreensão arquetípica poderia regenerar a história no sentido de revertê-la ou limpá-la. Tal tarefa é imensamente difícil, exigindo aquela intensidade heróica que Clio celebra. Por essa razão, o trabalho analítico nos níveis coletivos da alma é tão "heróico". Mudanças psicológicas - mudanças de atitude, mudanças de personalidade, aquelas fundamentais lustrações da alma - são também regenerações da história. Transformar as atitudes de minha família ao desnudar padrões nas emaranhadas raízes ancestrais não é meramente problema analítico pessoal. É passo histórico rumo a libertar uma geração do padrão coletivo. Ao modificar esse padrão coletivo, há mudança na própria história. E cada um, qualquer um que abre uma clareira no seu pedaço de floresta do passado é o herói que redime o tempo e o bode expiatório que, ao tomar para si os pecados, desfaz o tempo. Portanto, somos nós os fiéis da balança na transição histórica, e aquilo que fazemos em nossas vidas psicológicas tem importância histórica, não apenas no plano interno da salvação da alma individual com relação à história. Mas, é a maneira na qual a própria história, enquanto aquilo que acontece coletivamente fora de nós, pode ser lavada e curada.
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