Há entre os junguianos a idéia de que a possibilidade da individuação ocorre no que Jung chamou de metanóia (reorientação), a virada entre a primeira e a segunda metade da vida. A individuação, portanto, seria uma tarefa para a segunda metade da vida; enquanto que na primeira metade teríamos como destino a necessidade de adaptação ao mundo exterior. Isto nunca me soou adequado, pois o jovem está, em muitos casos, bastante envolvido com questões que vão muito além do problema da adaptação ao mundo. É verdade que em alguns casos é adequado relacionarmos determinados processos psíquicos com a idade cronológica, como por exemplo, o desenvolvimento do ego, da primeira infância até a adolescência. Isto de fato parece ser um processo arquetipicamente determinado para ocorrer em períodos cronológicos mais ou menos definidos; pois o vemos se repetir sempre e de novo. É verdade também que o jovem é confrontado com o problema da adaptação ao mundo de forma bastante urgente, pois nascemos em um mundo que já é dado, em uma cultura particular, inseridos em determinada sociedade e em um ambiente familiar definido. O jovem, sem dúvida nenhuma terá que dar conta de se adaptar a este mundo.
No entanto, o homem mais velho também continua a ser confrontado com a questão da adaptação ao mundo. Principalmente em nosso tempo em que as mudanças são extremamente rápidas; e não somente no que diz respeito ao surgimento avassalador de novas tecnologias, mas também de novas formas de se relacionar e da afirmação de uma diversidade cada vez maior que antes era silenciada e excluída pela tradição; sem falar na degeneração da própria tradição. Em nosso tempo tudo muda, e rápido; o que era aceitável há uma década é considerado desprezível atualmente. A necessidade de adaptação ao mundo estará sempre colocada ao indivíduo, independente do período cronológico de sua vida. Considerar que nos adaptamos ao mundo na primeira metade da vida para depois sermos confrontados com o problema do significado, como se aquela primeira fase já estivesse superada, é não conseguir olhar para o agora.
Do mesmo modo, o jovem não tem como destino exclusivo a adaptação ao mundo exterior, pois seu mundo interior está sempre colocado e o confrontando. A adesão massiva de jovens a ideologias políticas e a comum confusão em relação à religiosidade são expressões da necessidade interior de dar significado ao mundo. Não se trata exclusivamente de aderir a representações coletivas, como uma espécie de adaptação. Embora isso de fato ocorra, há também um processo contínuo de diferenciação do que é dado pelo coletivo, para o desenvolvimento de um caminho e um olhar singular sobre o mundo. A psicopatologia na adolescência muitas vezes mostra isso de forma bastante radical, onde os jovens muitas vezes são confrontados de forma paralisante com o eterno e, nestes casos, a urgência em suas vidas passa longe da adaptação ao social. É quando a experiência frustra o ponto de vista determinista que considera que este não seria o período cronológico para que este tipo de coisa ocorresse. É só mais um exemplo de que uma teoria nunca deve tentar enquadrar o mundo dentro de seus próprios moldes.
Por outro lado, não considero a individuação na perspectiva do desenvolvimento; onde a pessoa estaria se individuando desde o nascimento. Gosto da definição de Jung sobre a individuação e sua relação com a liberdade. Mas a idéia de certos processos serem exclusivos da primeira ou segunda metade da vida é, no mínimo, determinista e me parece ter como padrão a vida do próprio Jung. Segundo Hillman, esta fixação cronológica da possibilidade da individuação não foi definida por Jung, mas por pessoas que vieram depois dele. Considero que este é um ponto de vista que se afasta da experiência e de nossa realidade atual. Talvez no tempo de Jung fosse de fato assim para a grande maioria das pessoas. No entanto, na cultura ocidental atual, onde os "caminhos" do inconsciente coletivo cristalizados na cultura estão em decomposição – como a morte da religião (e da imaginação), a falência de uma série de convenções tradicionais e instituições sociais – faz com que o caminho traçado por nossos antepassados simplesmente se apague. Isso torna nossa cultura ansiogênica e potencialmente neurotizante. A psicopatologia da infância e adolescência deixa claro que a neurose da primeira metade da vida não pode ser considerada exclusivamente como neurose de adaptação ao mundo, ou estar invariavelmente relacionada aos complexos paternais. E mesmo nesses casos, o complexo paterno ou materno está completamente mergulhado no Zeitgeist - no espírito do tempo; portanto vai muito além de uma neurose familiar, podendo ser incluída na maldição do tempo.
A cultura não oferece mais os caminhos em que a energia psíquica antes fluía desimpedida e nos protegia de conflitos e da própria neurose; possibilitando-nos mudanças sem que nos déssemos conta. Jung e Hillman concordam, por exemplo, que a religião tem função preventiva em relação à psicopatologia. Pra Jung, a religião nos protege da numinosidade avassaladora dos arquétipos por um lado, mas nos mantém inconscientes por outro. Jung ainda afirma que a individuação não é para todos. Quando ele afirma isso, não está dizendo que a individuação é para os poucos escolhidos, como algumas pessoas gostam de imaginar (ou se imaginar). Mas somente que não é um imperativo para uma vida satisfatória. Aquelas pessoas em que a cultura dá conta de um bom ajustamento, isto é, aquelas em que a energia flui adequadamente através dos canais culturais, não precisam perder suas bases e entrar em conflitos penosos em nome da individuação. Mas o fato é que em nosso tempo, com a decadência destes canais culturais, não temos muita trilha a seguir, e talvez os jovens estejam mais mergulhados nesse problema do que os mais velhos. As migalhas de pão de nossos avós foram quase todas comidas por pássaros. Estamos em uma sociedade onde tudo muda extremamente rápido. Onde muitos valores tradicionais caem por terra e as instituições não são mais capazes de oferecer caminhos prontos a serem seguidos, pois estão desacreditadas; talvez uma exceção sejam as escolas e universidades (“se não estudar, não será ninguém na vida!”).
Hillman afirma que a neurose coletiva de nossa geração é a expressão psíquica de uma necessidade histórica, que deposita em nós o problema coletivo da individuação. Sem caminhos traçados no chão, somos obrigados a encontrar novos caminhos, desbravar a floresta noturna de Pã (não a toa vemos a ansiedade cada vez mais presente no mundo contemporâneo). A neurose que nasce das ruínas não tem mais os muros sólidos da cultura para contê-la; e por esse mesmo motivo traz a necessidade da individuação. A neurose trazida pela maldição de nosso tempo é a trombeta dos cavaleiros do apocalipse que nos anuncia que é chegada a hora. E nos traz não somente a necessidade de encontrar nosso próprio caminho, mas através de nosso caminho singular recriar a própria cultura. E isso não é tarefa da segunda metade da vida, é tarefa para todos aqueles desajustados que não encontram bases sólidas nas ruínas da cultura.
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