sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O trauma e as defesas arquetípicas da alma - Donald Kalsched


Texto retirado do livro "O mundo interior do trauma" de Donald Kalsched

O que os sonhos revelam e o que pesquisas clínicas recentes demonstram é que, quando o trauma atinge a psique em desenvolvimento de uma criança, tem lugar uma fragmentação da consciência na qual as diferentes "partes" (Jung as chamava de psiques fragmentadas ou complexas) se organizam de acordo com certos padrões arcaicos e típicos (arquetípicos), mais comumente díades ou sizígias formadas por "seres" personificados. Tipicamente, uma das partes do ego regressa ao período infantil, e outra parte progride, isto é, cresce rápido demais e se torna precocemente adaptada ao mundo exterior, com frequência como um "falso eu" (Winnicott). A parte da personalidade que progrediu cuida, então, da parte que regrediu. Essa estrutura dual foi independentemente descoberta por clínicos de muitas convicções teóricas diferentes, fato que indiretamente respalda a sua base arquetípica. [...]

Nos sonhos, a parte da personalidade que regrediu é geralmente representada como um eu-criança ou um eu-animal vulnerável, jovem e inocente (não raro feminino) que permanece vergonhosamente oculto. Seja qual for a sua encarnação particular, esse "inocente" remanescente do eu total parece representar um núcleo do espírito pessoal imperecível da pessoa - o que os antigos egípcios chamavam da "alma-Ba", ou a Alquimia, o espírito alado vitalizante do processo de transformação, isto é, Hermes/Mercúrio. Esse espírito sempre foi um mistério, uma essência da individualidade que nunca é totalmente compreendida. É a essência imperecível da personalidade - a que Winnicott se referia como o "Verdadeiro Eu" e que Jung, buscando um conceito que reverenciaria as suas origens transpessoais, chamou de Self. A violação desse núcleo interior da personalidade é inconcebível. Quando outras defesas falham, as defesas arquetípicas não medirão esforços para proteger o Self - chegando mesmo ao ponto de matar a personalidade que abriga esse espírito pessoal (suicídio).

Nesse ínterim, a parte que progrediu da personalidade é representada nos sonhos por um poderoso ser notável benévolo ou malévolo que protege ou oprime o seu parceiro vulnerável, às vezes mantendo-o aprisionado internamente. Ocasionalmente, no seu aspecto protetor, o ser benévolo/malévolo aparece como um anjo ou um animal selvagem milagroso como um cavalo especial ou um golfinho. Mais frequentemente, a figura "protetora" é daimônica e aterrorizante para o ego do sonho. [...] Às vezes o atormentador malévolo interior muda de rosto e apresenta um aspecto mais benévolo, com isso identificando-se como uma figura "dupla", que reúne o protetor e o opressor. 

Juntas, as imagens "mitologizadas" das partes do eu "que progrediram versus as que regrediram" formam o que chamo de sistema de autocuidado arquetípico da psique. O "sistema" é arquetípico porque é, ao mesmo tempo, arcaico e típico das operações de autopreservação da psique, e porque ele é mais antigo e mais primitivo do ponto de vista do desenvolvimento do que as defesas normais do ego. Como essas defesas parecem ser "coordenadas" por um centro mais profundo na personalidade do que o ego, elas foram chamadas de "defesas do Self" (Stein). Veremos que essa é a uma designação teórica apropriada porque enfatiza o caráter "numinoso", impressionante, dessa estrutura "mitopoética" e porque a figura malévola no sistema de autocuidado apresenta uma imagem convincente do que Jung chamava de lado escuro do Self ambivalente. [...]

O sistema de autocuidado executa as funções autorregulatórias e mediadoras internas/externas que, em condições normais, são executadas pelo ego operacional da pessoa. É aqui que surge um problema. Uma vez que a defesa do trauma é organizada, o sistema de autocuidado "faz a triagem" do todas as relações com o mundo exterior. O que foi concebido para ser uma defesa contra um trauma adicional torna-se uma importante resistência a todas as expressões espontâneas desprotegidas do eu no mundo. A pessoa sobrevive, mas não é capaz de viver criativamente. A psicoterapia torna-se necessária.

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