sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Saci Pererê nas regiões do Brasil do Século XIX - João Barbosa Rodrigues

Em homenagem ao dia do Saci (31 de outubro) trago esta obra prima de João Barbosa Rodrigues contando sobre o Saci do século XIX de Norte à Sul do país. O autor descreve as diferenças  regionais desta personagem mítica tão presente no imaginário nacional. Este texto constitui joia raríssima para o estudo da alma brasileira.

Texto retirado do livro Poranduba amazonense de João Barbosa Rodrigues. Este livro foi publicado em 1890. Nesta época, as regras ortográficas da língua portuguesa eram diferentes das atuais. Tomei a liberdade de corrigir palavras do texto original para o português contemporâneo. Além disso, acrescentei entre colchetes, significados de algumas palavras pouco utilizadas na atualidade, que são restritas à regiões específicas do país ou que estão no idioma Tupi. 


O civilizado, que muitas vezes não entende a pronúncia do sertanejo, que é o mais perseguido por ele [pelo Saci] em suas viagens, tem-lhe alterado o nome; já o fez Çacy-pererê. Saperê, Sererê, Sareré, Siriri, Matim-taperê, e até já lhe deu um nome português, o de Matinta-Pereira, que mais tarde talvez, terá o sobrenome da Silva ou da Matta.

Para conseguir seus fins, e fazer suas proezas, sem ser visto, quase sempre vive o Çacy [Saci] ou Maty metamorfoseado em pássaro, que se denuncia pelo canto, cujas notas melancólicas, ora graves ora agudas, iludem o caminhante que não pode assim descobrir-lhe o pouso, porque, quando procura vê-lo pelas notas graves, que parecem indicar-lhe estar o Çacy [Saci] perto, ouve as agudas, que o fazem já longe. E assim iludido pelo canto se perde, leva descaminho nunca vendo o animal.

Quando no Norte, os tapuyos, ouvem o canto de Maty-taperê, e no Sul, os roceiros ou os Kaipiras, o do Kaapora ou do Çacy-taperê; que o civilizado toma por Alma de caboclo, os velhos o esconjuram [lhe rogam pragas]; as crianças unidas conchegam-se ao colo das mães; estas, arrepiadas, olham para os pais, que tremem, mas não negam o fumo que espalham pelas cercas dos quintaes e pelas portas para que o Çacy [Saci] se cale, e se retire, levando com que matar o vício de cachimbar.

Quando não se apresenta aos viandantes sob a forma de pássaro, reveste-se da forma humana, e só (no Sul) ou acompanhado de sua mãe (Pará e Maranhão) percorre as ruas, entra pelos roçados, vai às casas de farinha; penetra nas senzalas; aterroriza os passageiros; rouba a mandioca; furta farinha e quebra os bejus no forno, proezas em que é destro no Rio de Janeiro.

No Amazonas e Pará é um kurumi [curumim] de uma perna só, de cabelos vermelhos, os quais a civilização transformou em barrete [tipo de chapéu] vermelho (Pará) sempre acompanhado de uma velha tapuya [índios que não falam o idioma Tupi. Em Tupi significa "inimigo", "forasteiro"] ou preta (tatámanha [mãe de fogo em Tupi]) vestida em andrajos que pela calada da noite, e mesmo de dia assovia dizendo: Maty-taperê!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A psicologia junguiana e o resgate da alma brasileira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A alma brasileira não pode ser adequadamente circunscrita de forma exclusiva pela mitologia grega e pelo mito judaico-cristão. Somos um povo miscigenado, com fortes influências da cultura africana e indígena. Nossa cultura foi formada, literalmente pelo choque entre essas culturas. Apesar de nossa riqueza étnica e cultural, a história de dominação da cultura europeia tendeu a excluir nossas influências africanas e indígenas do debate acadêmico. Historicamente, os mitos, ritos e costumes destas culturas foram estudados por nossos etnólogos e antropólogos como culturas exóticas, mas somente raramente como constituintes fundamentais de nossa cultura, sempre presentes no aqui e agora. A psicologia junguiana no nacional tendeu, ao longo dos poucos anos em que floresceu no Brasil, a reproduzir as mesmas temáticas abordadas pelo pensamento europeu. Do ponto de vista arquetípico, as produções acadêmicas nacionais tendem a utilizar majoritariamente a mitologia grega e o mito judaico-cristão em suas amplificações. Não quero dizer que estes mitos não exerçam grande importância em nossa constituição cultural e psíquica, mas por outro lado é importante assumir que abordar cultura tão rica e complexa como a brasileira a partir desta perspectiva unilateral significa ignorar ampla parcela de nossa cultura; é ignorar ampla parcela de nossa alma. 

Somente recentemente a psicologia junguiana brasileira parece ter se ocupado de forma séria com a constituição complexa de nossa cultura, levando em conta as diversas influências étnicas e culturais que nos constituem enquanto brasileiros. Um exemplo do esforço nacional pelo resgate da alma brasileira foi materializado no primeiro volume da coleção “alma brasileira” publicado em 2014 pelas editoras Mauad X e Bapera. Esta coleção foi idealizada e planejada, segundo Oliveira (2014), a partir do “Colóquio: Psicomitologia Junguiana e Mitos Brasileiros” em novembro de 2011. O objetivo da coleção é introduzir de forma definitiva os mitos constituintes de nossa cultura, ainda vivos no imaginário brasileiro, no estudo de nossa alma sob a perspectiva da psicologia junguiana. Leonardo Boff em seu prefácio para o primeiro volume desta coleção, nos fala sobre a importância desta empreitada. Afirma ele que “diversa é a composição étnica, diferentes são as regiões geográficas do país e vigora um rico sincretismo em curso que, seguramente, vai moldar toda a cultura brasileira futura. É o que faz o Brasil complexo e desafiador” (BOFF in OLIVEIRA, p. 7, 2014). Este desafio a que se refere é fundamental para a compreensão e o resgate de nossa identidade cultural, que há séculos sofre de um abafamento dominador da cultura europeia e tende a desqualificar e excluir a África e a América pré-colombiana de sua reflexão sobre si própria. Resgatar nossas raízes enquanto cultura, isto é, aqueles nossos aspectos que foram negligenciados, equivale a reconstruir nosso futuro; reconstruir nossa identidade cultural. Ainda segundo Boff, “uma nação revela já maturidade quando começa a pensar a si mesma com um olhar próprio, mesmo quando se serve de um arsenal teórico vindo de fora mas filtrado pela nossa singularidade como povo” (Ibid: 7). Me parece que não só a psicologia junguiana brasileira, mas nossa sociedade de forma mais ampla, começa a atingir tal grau de maturidade que permite pensar sobre si mesma a partir da própria singularidade enquanto povo. Faz-se necessário que a psicologia analítica, sem negligenciar suas raízes europeias, comece também a valorizar a totalidade da cultura brasileira a fim de se aproximar de um entendimento mais original e radical sobre a alma brasileira; e consequentemente ajude na construção de uma identidade cultural fundamentada em suas próprias raízes, em sua totalidade. 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Entrevista de Joseph Campbell à Revista The New Story (1985)


A presente entrevista foi retirada de um blog na internet (link no final desta postagem). Foi traduzido e editado pelos responsáveis pelo blog.

"Muitos de vocês já devem conhecer a célebre entrevista de Joseph Campbell para Bill Moyers em O Poder do Mito, não é mesmo? Pois bem, aqui lhes trago uma outra entrevista, concedida a Tom Collins e publicada na revista The New Storyem 1985, nos EUA. Se trata, é claro, de um entrevista muito mais curta do que a citada acima, mas exatamente por isso acaba sendo um excelente resumo do pensamento de Campbell acerca da mitologia, das religiões, dos rituais e dos rumos da sociedade moderna, em sua trágica carência de mitos"

A entrevista foi traduzida do inglês por Gabriel Fernandes Bonfim, revisada por Rafael Arrais.

Joseph Campbell talvez seja o acadêmico mais proeminente no estudo da mitologia. Entre os seus diversos livros podemos destacar O herói de mil faces, As máscaras de Deus (série) e o célebre O poder do mito. O entrevistador, Tom Collins, é um escritor e editor de Los Angeles, que já trabalhou com Steven Spielberg.


1. A importância dos mitos

[Tom] O que os mitos fazem por nós? Por que a mitologia é tão importante?

[Joseph] Ela lhe põe em contato com um plano de referência que vai além da sua mente e adentra profundamente o seu próprio ser, até as vísceras. O mistério definitivo do ser e do não ser transcende todas as categorias de pensamento e conhecimento. Ainda assim, isto que transcende toda a linguagem é a própria essência do seu ser; então você está descansando sobre ela, e sabe disso.

A função dos símbolos da mitologia é nos levar a uma espécie de insight, “Aha! Sim, eu sei o que é isto, isto sou eu mesmo”. É disto que se trata a mitologia, e através dessa vivência você se sente em contato com o centro do seu próprio ser, cada vez mais, e todo o tempo. E tudo o que você faz dali em diante pode ser relacionado com tal grau de verdade. No entanto, falar sobre isso como “a verdade” por ser um pouco enganoso, pois quando pensamos na “verdade”, pensamos em algo que pode ser conceitualizado. E tal vivência vai além disso.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O Filemôn de C. G. Jung e o Avôhai de Zé Ramalho - D. Júnior Viana Costa


Texto de D. Júnior Viana Costa. Email para contato: juniorvianac@oi.com.br


Carl Gustav Jung (1875 – 1961), o mais famoso discípulo dissidente de Sigmund Freud, afastando-se do último por divergências pessoais e teóricas em relação ao campo da Psicanálise, defende a tese de que nossa psique é constituída de uma camada inconsciente mais profunda do que o inconsciente pessoal proposto por Freud, o que Jung veio a denominar de Inconsciente Coletivo ou Inconsciente Supra-pessoal. Embora Freud tenha em certo momento discorrido sobre os “resíduos arcaicos” e “padrões filogenéticos”, como nos lembra Jung no “O Homem e seus símbolos”, Freud não desenvolveu nenhum conceito específico sobre o tema. Jung afirma que a psicanálise, enquanto teoria psicológica, se restringe a uma única representação arquetípica, o Complexo de Édipo.

Para Jung, “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são 'cum grano salis' os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos.”

É necessário observar que tal “conhecimento inato” e tais “experiências” são armazenadas de modo peculiar no inconsciente coletivo, e não em forma de “dados diretamente copiados”, como poderia parecer à primeira vista. Se apresentam em modelos típicos de comportamento e de percepção, motivos mitológicos, religiosos etc. As unidades do inconsciente coletivo são os arquétipos, modelos estruturais do aparelho psíquico. A hipótese da existência de um Inconsciente Coletivo permeia campos diversos, como a psicologia, ciências humanas - como a antropologia e as ciências da religião - e mesmo a biologia.