domingo, 11 de maio de 2014

Maldição Familiar - Liz Greene

Texto de Liz Greene retirado do livro: "A astrologia do destino".

As famílias são organismos, e a vida psíquica de um emaranhado familiar é um circulo fechado, onde dramas emocionais antigos e muitas vezes violentos são encenados na escuridão secreta do inconsciente. Nada é visto até que se procure ajuda profissional para um filho "com distúrbios" e aí, de forma incrivelmente lenta e muitas vezes enfrentando uma árdua oposição, os fios que tecem o conto são desembaraçados e o que aparentava ser a "doença" individual vai-se revelando cada vez mais evidentemente como um complexo familiar não resolvido. [...]. Mas há outras coisas além de conflitos instintivos que são transmitidos na família, podendo ostentar tanto uma face criativa quanto destrutiva. O mito, novamente, é uma fonte de imenso valor para a compreensão dos padrões arquetípicos que dominam famílias geração após geração. A imagem da maldição familiar, tão cara aos mitos gregos, é um retrato vivo do legado invisível da linhagem familiar e que personifica a experiência do destino familiar. [...]

Da perspectiva da psicologia profunda, as "características do sistema" que exercem tão poderosa influência na pessoa, em termos comportamentais e intrapsíquicos, não são assim tão diferentes dos deuses em guerra no drama de Orestes. Em outras palavras, essas características não são apenas padrões de hábito da comunicação e da atribuição de papéis estabelecidos pelo tempo, que determinam se sua mãe sempre deve sofrer ou ser mediadora de brigas, o pai sempre deve manifestar a raiva e a violência, ou se o filho ou a filha é asmático, anoréxico, obeso ou de alguma forma identificável como "o doente". As características do sistema, em última análise, são arquétipos, o âmago dos padrões ou modos de percepção e expressão cujo melhor retrato é a imagem mítica. Passam de geração em geração da mesma forma que a maldição da casa de Atreu [referência ao mito de Tântalo]. Não estou em condições de fazer comentários sobre sobre a existência de um aspecto genético nessa herança psíquica. Porém, mesmo assim, ainda teríamos a questão de uma herança. [...] 

Frances Wickes atribui a maior importância à unidade do inconsciente da mãe e filho. É só através de uma luta lenta e gradual que surge o ego individual do filho - uma coisa fraca, frágil, desprotegida, passível de ser facilmente demolida e marcada pelos conflitos não expressos e pelas energias frustradas que vivem na psique do genitor. Os pecados do pai e da mãe são, na verdade, infligidos aos filhos, não através da ação ostensiva, mas através do que jamais saiu da escuridão primitiva. Essa é a Moira [alusão às divindades gregas relacionadas ao destino], o seu quinhão. Os conflitos inconsciente que permaneceram não resolvidos voltam para se aninhar no filho, na forma de herança psíquica. Mais tarde, o elo secreto entre o inconsciente do filho, agora adulto, e a herança inconsciente dos pais permanece tão poderosa como sempre. [...] A experiência de muitos psicoterapeutas, inclusiva a minha, mostra que o trabalho com essas questões familiares afeta, de forma estranha e inexplicável, os outros membros da família. É como se a verdadeira unidade da psique da família fosse revelada por uma pessoa que assume a responsabilidade de trabalhar os complexos familiares. A unidade da substância da família também não morre com a morte física dos pais, pois eles não são só pessoas de verdade, mas imagens na psique do filho. Assim, "os ancestrais" permanecem como herança viva, da mesma forma que a herança genética permanece viva dentro do corpo e continua a ser transmitida às gerações futuras.

Existe uma questão mais ou menos problemática a respeito dessa "herança" de fatores psíquicos, entretanto, abrangendo um aparente par de opostos. Não estou certa até que ponto esses opostos são realmente opostos, mas eles colocam um problema não só do ponto de vista da "condução" do trabalho psicoterapêutico, mas também de um ponto de vista filosófico - ou, em outras palavras, do ponto de vista do destino. Se as experiências dolorosas ou vitalmente  perturbadoras são "causadas" pelo genitor - ou através do comportamento manifesto ou, como sugere Wickes, de conflitos inconscientes que chegam até o filho através da identificação inconsciente com o genitor - , segue-se que a responsabilidade mais esmagadora cabe à pessoa que põe um filho no mundo. É de se duvidar que muitos de nós teríamos filhos se percebêssemos o impacto total dessa responsabilidade. Também não se trata, efetivamente, "do que está escrito", porque presumivelmente o genitor sempre tem a opção de buscar maior compreensão de si mesmo para não oprimir sua prole com seus próprios dilemas não resolvidos. Grande parte do trabalho da psicoterapia, realizada em profundidade, envolve a separação da pessoa de sua identificação inconsciente com o genitor, que pode perdurar por toda a vida e não é menos poderosa só porque o filho tornou-se adulto e, aparentemente, deixou os pais para trás. Se o genitor não se valeu da oportunidade de assumir responsabilidade por seus conflitos, o filho, como adulto, pode fazê-lo; através de um trabalho de "reconstrução" dentro da terapia, a identidade da pessoa pode gradualmente sair de sob o manto da visão parental do mundo.


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