sábado, 31 de maio de 2014

Individuação, Self e Homem - C. G. Jung

Texto de C. G. Jung retirado do livro "Resposta a Jó"

Este acontecimento metafísico [a tendência divina a encarnar no homem empírico para nele se realizar] é conhecido pela psicologia do inconsciente como processo de individuação. Como, em geral, ele se tem realizado sempre de modo inconsciente, não pode ser entendido se não no sentido em que a glande se transforma em carvalho, o bezerro em boi e a criança em adulto. Mas, para que se tome consciência do processo de individuação, é preciso que a consciência seja confrontada com o inconsciente e se chegue a um equilíbrio entre os opostos. Como isso é logicamente impossível, necessitam-se de símbolos que sirvam para tornar visível a união irracional dos contrários. Estes símbolos são produzidos espontaneamente pelo inconsciente e ampliados pela consciência. Os símbolos centrais deste processo descrevem o si-mesmo [Self], isto é, a totalidade do homem, de um lado, por meio daquilo que lhe é consciente e, de outro, por meio do conteúdo inconsciente. O si-mesmo é o homem completo, cujos símbolos são o menino divino ou seus sinônimos. Este processo que aqui esboçamos apenas sumariamente pode ser pode ser observado no homem moderno, ou podemos lê-lo nos documentos da filosofia hermética medieval que versam sobre ele; quando se conhece tanto a psicologia do inconsciente quanto a alquimia, fica-se espantado com o paralelismo dos respectivos símbolos. 

É grande a diferença que medeia entre o processo natural de diferenciação que transcorre de modo inconsciente, e o processo de individuação que se torna consciente. No primeiro caso, a consciência não intervém de modo algum. Por isto o seu final é tão obscuro quanto o seu começo. No segundo caso, porém, são tantos elementos obscuros que vêm à luz, que a personalidade é como que radiografada, ao mesmo tempo que a consciência ganha infalivelmente em amplidão e percepção. A confrontação entre a consciência e o inconsciente faz com que a luz brilhe nas trevas, e não somente seja compreendida pelas trevas, como também as compreenda. O filius solis et lunae [filho do sol e da lua] é, a um só tempo, símbolo e possibilidade de união dos contrários. É o A e o Ω do processo, o Mediador e o Intermedius. "Habet mille nomina" (tem mil nomes), dizem os alquimistas, indicando, com isto, que a causa de onde decorre o processo de individuação e para qual este processo tende é um ineffabile [inefável] sem nome.


terça-feira, 27 de maio de 2014

O Destino de Deus - C. G. Jung

Texto de C. G. Jung retirado do livro "Resposta a Jó" (§647 - 648)

Nota-se no caráter de Cristo, além de seu amor para com os homens, uma certa irritabilidade e uma falta de autorreflexão, como acontece frequentemente com os temperamentos emotivos. Não se encontra em parte alguma uma indicação de que Cristo se tenha admirado consigo mesmo. Parece que ele não se sente confrontado consigo mesmo. Existe apenas uma exceção a esta regra, o seu grito de desespero na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Sua natureza humana atinge aqui a divindade e no momento em que Deus vive a experiência do homem mortal e sente em si próprio os sofrimentos pelos quais fizera passar o seu fiel servidor Jó. É aqui que se responde a Jó e, como se pode ver, é um momento ao mesmo tempo divino e humano, "escatológico" e "psicológico". O motivo divino se acha presente, de forma impressionante, neste momento em que se pode sentir o homem em toda a sua dimensão. Os dois são uma só e mesma coisa. Como é que se pretende desmitizar aqui a figura de Cristo? Uma tentativa racionalista desta espécie nada mais faria, evidentemente, do que esvaziar o mistério desta personalidade, e o que restasse não seria mais o nascimento e o destino de um Deus no tempo, mas a figura de um reformador judeu interpretado e entendido erroneamente em sentido helenístico, algo assim como um Pitágoras, um Buda, ou um Maomé, mas jamais como um filho de Deus ou um Deus feito homem. Além do mais, parece que tais pessoas não percebem com suficiente clareza que espécies de reflexão um Cristo isento de toda escatologia por força haveria de provocar! Existe hoje uma psicologia empírica, embora a teologia tudo faça por ignorá-la, e certas afirmações de Cristo poderiam ser rigorosamente analisadas por ela. Em outras palavras: se desvincularmos estas afirmações da sua relação com o mito, não haverá outra maneira de interpretá-las senão em sentido pessoal. Mas se reduzíssemos afirmações como esta: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim", a uma psicologia pessoal, a que conclusão chegaríamos? É claro que à mesma a que chegaram os parentes de Jesus, ao afirmarem: "Ele está fora de si". Que sentido terá uma religião sem mito, se sua função, quando realmente existe, é precisamente a de nos ligar ao mito eterno?


terça-feira, 13 de maio de 2014

Evolução espiritual? - Luís Paulo Lopes

Texto de Luís Paulo Lopes

Não acho apropriada a idéia de evolução espiritual enquanto uma escala hierárquica crescente. Acho praticamente, se não completamente, impossível dosar se alguém é mais "evoluído" que outrem, do ponto de vista de quem se é. Na verdade, superficialmente é fácil fazer esse julgamento com base em preceitos arbitrários, mas no fundo, ninguém está apto a julgar um suposto progresso espiritual de uma segunda pessoa. Eu concordaria com o emprego da palavra evolução somente no sentido de transformação, mas nesse caso não há hierarquia possível. Nessa perspectiva a evolução seria o próprio devir, o fluir da vida eternamente mutável. Quando a palavra evolução é utilizada para definir quem supostamente está mais “adiantado” no caminho espiritual, pode funcionar de forma nociva. Já que cria um ideal definido do que seria “a meta”, isto é, define as características de comportamento e caráter da pessoa que supostamente “chegou lá”. Esse ideal do “homem-santo” certamente varia entre diferentes grupos, mas o fato é que os praticantes podem tender a imitar o ideal de pessoa evoluída do grupo a que pertencem. E é aqui que a idéia de evolução espiritual pode fazer o oposto daquilo a que se propõe. Já que, ao invés da pessoa ser quem realmente é, passa a ser aquilo que o grupo acredita ser o ideal. Deste modo, há uma alienação de si mesma em formas artificiais, pobres e sem autenticidade. E o pior de tudo, apesar disso acredita-se que está num degrau superior da escada espiritual. 

Meu ponto de vista é de que virtudes não devem ser imitadas à força, mas devem se manifestar naturalmente dentro da verdade de cada um. A imitação da virtude certamente virá acompanhada do orgulho e em público se tornará vaidade; a vaidade (que tantas vezes nos pega pelo pé) por sua vez “fecha o céu”, quer dizer, impede qualquer abertura ao sagrado. Assim, o ego se apropria da espiritualidade e a utiliza para fortalecer sua posição contra Deus; a hybris! Tenho a opinião de que as virtudes se desenvolvem a partir de um processo de amadurecimento que envolve a personalidade total. Como que um fruto doce, que precisa de uma árvore forte e sadia para poder nascer. Um fruto não pode surgir simplesmente a partir da vontade, assim como o desejo de uma virtude não tornará ninguém virtuoso. A virtude simplesmente nasce a partir de quem nós somos!

domingo, 11 de maio de 2014

Maldição Familiar - Liz Greene

Texto de Liz Greene retirado do livro: "A astrologia do destino".

As famílias são organismos, e a vida psíquica de um emaranhado familiar é um circulo fechado, onde dramas emocionais antigos e muitas vezes violentos são encenados na escuridão secreta do inconsciente. Nada é visto até que se procure ajuda profissional para um filho "com distúrbios" e aí, de forma incrivelmente lenta e muitas vezes enfrentando uma árdua oposição, os fios que tecem o conto são desembaraçados e o que aparentava ser a "doença" individual vai-se revelando cada vez mais evidentemente como um complexo familiar não resolvido. [...]. Mas há outras coisas além de conflitos instintivos que são transmitidos na família, podendo ostentar tanto uma face criativa quanto destrutiva. O mito, novamente, é uma fonte de imenso valor para a compreensão dos padrões arquetípicos que dominam famílias geração após geração. A imagem da maldição familiar, tão cara aos mitos gregos, é um retrato vivo do legado invisível da linhagem familiar e que personifica a experiência do destino familiar. [...]

Da perspectiva da psicologia profunda, as "características do sistema" que exercem tão poderosa influência na pessoa, em termos comportamentais e intrapsíquicos, não são assim tão diferentes dos deuses em guerra no drama de Orestes. Em outras palavras, essas características não são apenas padrões de hábito da comunicação e da atribuição de papéis estabelecidos pelo tempo, que determinam se sua mãe sempre deve sofrer ou ser mediadora de brigas, o pai sempre deve manifestar a raiva e a violência, ou se o filho ou a filha é asmático, anoréxico, obeso ou de alguma forma identificável como "o doente". As características do sistema, em última análise, são arquétipos, o âmago dos padrões ou modos de percepção e expressão cujo melhor retrato é a imagem mítica. Passam de geração em geração da mesma forma que a maldição da casa de Atreu [referência ao mito de Tântalo]. Não estou em condições de fazer comentários sobre sobre a existência de um aspecto genético nessa herança psíquica. Porém, mesmo assim, ainda teríamos a questão de uma herança. [...] 

sábado, 10 de maio de 2014

Encantamento e Mitologia Pessoal - Paulo Urban

Texto de Paulo Urban, médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento, e-mail: urban@paulourban.com.br. 
Webpage: http://www.amigodaalma.com.br/


"Sim, somos todos heróis da própria jornada, mas isso nada tem a ver com revolucionar o mundo, salvar o planeta de ameaças alienígenas ou sair voando por aí com uma capa azul amarrada às costas; menos ainda devemos crer que a salvação de nossas almas dependa da ação de deuses ou heróis que venham de fora. A grande ação a que devemos, como heróis, nos entregar, não é outra senão aquela que se opera no anonimato de nossos corações, cujo maior ‘poder’ consiste em nos tornar prontos para que, ‘tocados de alegria’, possamos lidar com as adversidades do caminho.

Pois será assim, conquanto sigamos por esta estrada missionária, palmilhando-a de suor e lágrimas, que nos abriremos às situações pelas quais devemos obrigatoriamente passar, indo ao encontro dos arquétipos que guardam respeito à nossa pessoal mitologia, os únicos, a propósito, que poderão nos transformar de modo intrínseco e profundo.

Porque, segundo roga a Psicoterapia do Encantamento, “os mitos só têm sentido quando são sentidos”. Sem experimentarmos nossa mitologia pessoal, nada seremos além de autômatos a cruzar estradas sem destino, meros barcos fantasmas à deriva nos mares oceânicos, falidos robôs computando a esterilidade dos dias e noites sem sentido nem beleza, sem mérito ou poesia. Cada um busque, pois, por sua pessoal mitologia, é ela a chave da mais profunda transformação anímica”.