Texto retirado do livro "Memórias, sonhos, reflexões" de C. G. Jung.
No que se refere aos povos cristãos, o cristianismo deliquescente negligenciou desenvolver seu mito no decurso dos séculos. O cristianismo recusou ouvir aqueles que davam expressão à dinâmica obscura das representações míticas. Um Gioacchino da Fiore, um Meister Eckhart, um Jacob Boehme, e muitos outros foram mantidos em segredo para a grande maioria dos homens. O único raio de luz é Pio XII e seu dogma, mas nem mesmo se compreende o que eu pretendo dizer com isto. Não se compreende que um mito morre quando não vive mais ou quando seu desenvolvimento cessa. Nosso mito emudeceu e não mais nos responde. A culpa, porém, não cabe a ele, tal como está contido nas Sagradas escrituras, mas a nós que não continuamos a desenvolvê-lo; pelo contrário, impedimos todas as tentativas efetuadas nesse sentido. Em sua forma original, o mito mostra bem os pontos a partir dos quais poderiam nascer as possibilidades de seu desenvolvimento. Por exemplo, as palavras postas na boca de Cristo: "Mostrai-vos, portanto, astutos como a serpente e cândidos como as pombas." Porque teríamos a necessidade de ser astutos como a serpente? E quanto à candura da pomba? "... Se não voltardes ao estado de infância..." (Mateus XVIII, 3). Mas quem sabe o que as crianças realmente são? Que moral justifica o Senhor quando usurpa o asno de que tem necessidade para entrar em Jerusalém como vitorioso? E quanto à sua irritação semelhante ao de uma criança, quando maldiz a figueira? Que moral se segue à parábola do intendente fiel? E qual será esse conhecimento profundo e de tão grande alcance para nós, que encontramos nas palavras apócrifas do Senhor: "Meu amigo, se sabes o que fazes, és feliz, mas se não o sabes, és um maldito e um transgressor da Lei?" O que quer dizer, finalmente, aquilo que Paulo professa (Romanos, VII, 19): "... eu não faço o bem que quero e cometo o mal que não quero"? E eu silencio diante das profecias inequívocas contidas no Apocalipse, às quais, em geral, não se dá crédito, porque são muito embaraçosas.
A questão colocada outrora pelos gnósticos: "De onde vem o mal?" não encontrou resposta no mundo cristão. E a alusão de Orígens uma possível redenção do Diabo tornou-se heresia. Mas hoje a questão nos assedia e precisamos dar uma resposta. Permanecemos de mãos vazias, espantados, perplexos, e nem mesmo percebemos que nenhum mito nos ajuda, agora que temos tanta necessidade dele. Em consequência à situação política a aos acontecimentos terríveis, isto é, demoníacos da ciência, sentimos calafrios secretos e pressentimentos obscuros. Mas não sabemos o que fazer e poucos são aqueles que chegam à conclusão de que, desta vez, trata-se da alma do homem, há muito esquecida.
O desenvolvimento posterior do mito deveria, sem dúvida, reportar-se ao momento em que o Espírito Santo se revelou aos Apóstolos, fazendo-lhes filhos de Deus; não somente eles, mas a todos os que, através deles e depois deles, receberam filiação - o estado de filho de Deus - participando assim da certeza de que não eram apenas animalia autóctones, nascidos da terra; mas sua humanidade invisível, interior, tinha origem e futuro na primeira imagem da totalidade, no Pai eterno, tal como se exprime o mito da história cristã da salvação. [...]
Uma vez que, segundo as premissas dogmáticas do cristianismo, Deus é inteiramente presente em cada uma das três pessoas da trindade, Ele deve encontrar-Se também, totalmente, em cada uma das partes que recebeu o Espírito Santo. Desse modo, cada ser humano pode participar de Deus em sua totalidade e, assim, à filiação, ao estado de filho de Deus. A complexio oppositorum (complementaridade dos opostos) no seio da imagem de Deus penetra assim no homem, e isso não sob a forma de uma unidade, mas de um conflito, a metade tenebrosa da imagem se chocando com a representação já recebida de que Deus é "luz". É esse o processo que se desenrola em nosso tempo, sem que os mestres responsáveis pelos homens o tenham compreendido, se bem que sua tarefa fosse discernir estes desenvolvimentos. É verdade que todos sabem que estamos num ponto de mudança importante das idades, mas a crença é que esse ponto de mudança é suscitado pela fissão ou fusão do átomo, ou pelos foguetes interplanetários. E, como de costume, a cegueira é completa no que diz respeito à alma humana.
[...] nossa psique é estruturada à imagem da estrutura do mundo, e o que ocorre num plano maior se produz também no quadro mais ínfimo e subjetivo da alma. Por esse motivo, a imagem de Deus é sempre uma projeção da experiência interior vivida no momento da confrontação com um opositor poderosíssimo. Este é figurado por objetos que deram origem à experiência interior e que a partir daí, guardaram uma significação numinosa; ou então é caracterizado por uma numinosidade e pela força subjugante dele. No último caso, a imaginação se liberta do simples plano do objeto e tenta esboçar a imagem de uma entidade invisível, que existe atrás das aparências. Penso aqui na mais simples das formas fundamentais da mandala, a circunferência, e na divisão mais simples do círculo (mentalmente): o quadrado e a cruz.
Tais experiências têm uma influência benigna ou devastadora no homem. Este não pode apreendê-las, compreendê-las, nem dominá-las. Não pode livrar-se delas ou escapar-lhes, e por este motivo as sente como relativamente subjugantes ou mesmo onipotentes. Reconhecendo com precisão que elas não provêm de sua personalidade consciente, o homem as designa de mana, Demônio ou Deus. O conhecimento científico utiliza o termo "inconsciente", confessando assim sua ignorância na matéria, o que é compreensível, uma vez que esse tipo de conhecimento nada pode saber da psique, porquanto só através dela pode atingir o conhecimento. Eis porque não é possível discutir ou afirmar a validade da designação de mana, Demônio ou Deus, mas unicamente constatar que o sentimento de algo estranho ligado à experiência de algo objetivo e autêntico.
2 comentários:
Muito interessante o texto, Luís, embora as vertentes tradicionais tenderiam a ver neles nada mais do que heresias, e talvez tenham razão em certa medida. A aceitação do cristianismo formal de formas mais subterrâneas do cristianismo passa por problemas teológicos complicados. De fato o mito cristão foi negligenciado em muitos aspectos importantes, tornou-se, através da dogmatização e da institucionalização, letra morta, ao menos em grande medida.
Há livros da bíblia que até hoje são pouco estudados de forma mais profunda pelos cristãos, como o citado livro de Apocalipse e o livro de Daniel, ambos que versam sobre "o fim dos tempos", que são um verdadeiro banquete de signos e arquétipos, uma expressão magnífica do inconsciente coletivo.
A visão de Jung do cristianismo absolutamente não é uma visão ortodoxa ou tradicional, inclusive percebo algumas incompreensões dele quanto ao mesmo. No entanto é sempre bom procurarmos extrair dos mitos o seu sentido mais genuíno. além das aparencias, e Jung faz isso muito bem, nao so com o cristianismo, mas com outras formas de religiao também.
Parabéns pelo blog, discussões atuais que fogem do cansativo mais do mesmo junguiano. Voltarei com mais tempo para continuar a leitura dos artigos.
Abraços
Júnior Viana
Gostei, é para ler com calma 2 ou 3 vezes e criar a sua própria verdade que os
Postar um comentário