domingo, 14 de setembro de 2008

Shunyata: "O que é" é "o que é" - Chogyam Trungpa

Shunyata — o nada, o vazio, a vacuidade, a ausência de dualidade e conceituação. O mais conhecido dos ensinamentos de Buda sobre o assunto é apresentado no Prajnaparamita-hridaya, também chamado Sutra do Coração; (...)

Disse Avalokiteshvara: "O, Shariputra, a forma é vazia, o vazio é forma; a forma não é mais do que o vazio, o vazio não é mais do que a forma." Não precisamos descer aos pormenores do diálogo deles, mas podemos examinar essa afirmação a respeito da forma e do vazio, que é o ponto principal do sutra. E por isso precisamos ser muito claros e muito precisos acerca do significado do termo "forma".

Forma é o que é antes de projetarmos nossos conceitos sobre ela. É o estado original do "que está aqui", as qualidades coloridas, vividas, impressionantes, dramáticas, estéticas, que existem em todas as situações. Forma pode ser uma folha caindo de urna árvore e pousando num rio que desce de uma montanha; pode ser a plena claridade do luar, uma sarjeta na rua ou um monte de lixo. Essas coisas são "o que é", e, num sentido, são todas idênticas: todas são formas, todas são objetos, todas são precisamente "o que é". As avaliações que lhes dizem respeito são formadas mais tarde em nossa mente. Se efetivamente olharmos para as coisas como elas são, veremos que são apenas formas.

Portanto, a forma é vazia. Mas vazia do quê? A forma é vazia de nossas idéias preconcebidas, vazia dos nossos julgamentos. Se não avaliarmos e categorizarmos a folha da árvore que cai e pousa na corrente de água como oposta ao monte de lixo, então, ambos estarão ali, serão “o que é”. Eles são vazios de preconceitos. São precisamente o que são, naturalmente! O lixo é lixo, a folha da árvore é a folha da árvore, "o que é" é "o que é". A forma será vazia se a virmos na ausência de nossas próprias interpretações dela.



Mas o vazio também é forma. Esta é uma observação muito chocante. Julgávamos haver conseguido classificar tudo, pensávamos haver conseguido ver que tudo é o "mesmo", se de tudo tirarmos os nossos preconceitos. Isso compunha um bonito quadro: tudo o que vemos, mau ou bom, tudo é bom. Ótimo. Muito suave. Mas, o ponto seguinte é que o vazio também é forma, por isso, temos de reexaminar o assunto. O vazio da folha de árvore também é forma; não é realmente vazio. O vazio do monte de lixo também é forma. Tentar ver essas coisas como vazias é também vesti-las de conceito. A forma volta. Era fácil demais tirar todo o conceito e concluir que tudo simplesmente é o que é. Isso poderia ser uma saída, outra maneira de confortar-nos. Temos realmente de sentir as coisas como elas são, as características do estado de monte de lixo e as características do estado de folha de árvore, o estado de ser das coisas. Temos de senti-las ajustadamente, e não apenas cobri-las com o véu do vazio. Isso nada ajuda. Temos de ver o estado de ser do que está ali, as qualidades cruas e rudes das coisas exatamente como são. Esta é uma maneira muito precisa de ver o mundo. Primeiro, portanto, extinguimos todos os nossos pesados preconceitos, e depois eliminamos até as sutilezas de palavras como "vazio", o que nos deixa em lugar nenhum, completamente com o que é.

Por fim, chegamos à conclusão de que forma é apenas forma e o vazio é apenas o vazio, o que foi descrito no sutra como a visão de que a forma não é mais do que o vazio, que o vazio não é mais do que a forma; são inseparáveis. Vemos que a busca da beleza ou do significado filosófico da vida é apenas um modo de justificar-nos, dizendo que as coisas não são tão más quanto as supomos. As coisas são tão más quanto as supomos! Forma é forma, o vazio é vazio, as coisas são exatamente o que são e não precisamos vê-las à luz de qualquer raciocínio mais profundo. Finalmente descemos à Terra, vemos as coisas tais e quais são. Isso não significa ter uma inspirada visão mística com arcanjos, querubins e músicas suaves. As coisas são vistas como elas são, em suas próprias características. Neste caso, portanto, shunyata é a ausência total de conceitos ou véus de qualquer espécie, a ausência até da conceituação de "forma é vazio" e de "o vazio é forma". É uma questão de ver o mundo de modo direto sem aspirar "maior" consciência ou significação ou profundidade. É perceber as coisas literalmente de maneira direta, como elas são por si mesmas. (...)

Como, então, começa a crença num "eu" e todo o processo neurótico? Em linhas gerais, conforme os Madhyamikas, toda vez que ocorre uma percepção de forma, verifica-se uma reação imediata de fascinação e incerteza da parte de um subentendido percebedor da forma. Essa reação é quase instantânea. Leva apenas uma fração de fração de segundo. E, assim que reconhecemos o que é a coisa, a nossa reação seguinte é dar-lhe um nome. Com o nome, naturalmente, vem o conceito. Tendemos a conceituar o objeto, o que quer dizer que, a essa altura, já não somos capazes de perceber as coisas como elas realmente são. Criamos uma espécie de acolchoamento, um filtro ou véu entre nós e o objeto. É isto que impede a manutenção da consciência contínua, durante e após a prática da meditação. Este véu nos afasta da consciência panorâmica e da presença do estado meditativo, porque, comumente, somos incapazes de ver as coisas como elas são. Sentimo-nos compelidos a nomear, a traduzir, a pensar discursivamente, e essa atividade nos afasta ainda mais da percepção direta e precisa. Assim, shunyata não é simplesmente consciência do que somos e de como somos em relação a tal e tal objeto, mas é antes a claridade, que transcende o acolchoamento conceptual e as confusões desnecessárias. Já não se está fascinado pelo objeto nem envolvido como sujeito. É liberdade disto e daquilo. O que persiste é espaço aberto, a ausência da dicotomia do isto-e-aquilo. Eis aí o significado do Caminho do Meio ou Madhyamika.

(retirado de: Além do Materialismo Espiritual; de Chogyam Trungpa)

5 comentários:

Unknown disse...

mto bom esse blog...todos os posts são de extremo bom gosto...
continue nos iluminando com conhecimento...
salve os pensadores! paz!

Unknown disse...

Legal.. Trungpa, taí um mestre que quero conhecer a obra. abs!

Drikung Kagyu Media disse...

Maravilloso seu blog amigo bom gosto tudu!! eu visite...muita alegria pra voce.

Budismo y Yoga BLOG

(^)

Eduardo Piereck disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eduardo Piereck disse...

Sentimentos autênticos são a marca registrada dos que almejam alavancar sua consciência. Tal qual o pássaro em pleno vôo, tome nota de tua garantia e direito, estrelando por tal área demarcada em teu próprio coração. Convido-o a conhecer www.sentidosplenos.blogspot.com