segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O arquétipo do inválido e a clínica psicológica - Guggenbühl-Craig

Texto retirado do livro "Eros de muletas" de Adolf Guggenbühl-Craig

De acordo com a fantasia contemporânea de saúde, devemos nos tornar completos sendo a totalidade entendida no sentido de perfeição: "Seja perfeito..." O defeito mais insignificante, a menor disfunção deve ser curada, removida ou erradicada. Apesar de ter existido um tempo em que um temperamento melancólico era aceito, e até idealizado, hoje melancólicos são diagnosticados como "depressivos", são tranquilizados e medicados a ponto de se tornarem vegetais maravilhosamente contentes. No fundo todos somos conscientes de nossas falhas, nossas fraquezas, nossa invalidez. Ao mesmo tempo reprimimos essa compreensão de todas as maneiras possíveis. Lutamos interminavelmente, insensatamente para manter a ilusão de totalidade ao tentar alcançar a saúde perfeita.

Nossa cegueira quanto ao lugar e a importância do arquétipo do inválido torna-se uma atitude moralista, tendo como deuses máximos a saúde e a totalidade. Não é difícil imaginar o quão devastadora esta atitude é quando se trata daqueles que sofrem de neuroses e desordens psicossomáticas. Sou constantemente surpreendido por um tom de superioridade moral que desliza nas vozes dos psicoterapeutas quando discutem casos desta natureza. Neuróticos e psicossomáticos simplesmente são inferiores; eles não podem ser curados porque eles não o querem ser. Eles não querem mudar; eles não querem crescer. Eles recusam nossos esforços para sua melhora. Eles nem sequer escutam seus sonhos! Como afogados, eles agarram-se a suas resistências, defendendo-se, como vemos, tenazmente contra o terapeuta que está apenas tentando ajudá-los. Tais pessoas, tais pobres e ignorantes almas, merecem apenas nossa atenção quando abraçam nossa fantasia de crescimento/saúde/totalidade (é uma fantasia ou uma fixação ilusória?). Como terapeutas, apenas nos interessamos por eles quando eles querem ser curados.


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O trauma e as defesas arquetípicas da alma - Donald Kalsched


Texto retirado do livro "O mundo interior do trauma" de Donald Kalsched

O que os sonhos revelam e o que pesquisas clínicas recentes demonstram é que, quando o trauma atinge a psique em desenvolvimento de uma criança, tem lugar uma fragmentação da consciência na qual as diferentes "partes" (Jung as chamava de psiques fragmentadas ou complexas) se organizam de acordo com certos padrões arcaicos e típicos (arquetípicos), mais comumente díades ou sizígias formadas por "seres" personificados. Tipicamente, uma das partes do ego regressa ao período infantil, e outra parte progride, isto é, cresce rápido demais e se torna precocemente adaptada ao mundo exterior, com frequência como um "falso eu" (Winnicott). A parte da personalidade que progrediu cuida, então, da parte que regrediu. Essa estrutura dual foi independentemente descoberta por clínicos de muitas convicções teóricas diferentes, fato que indiretamente respalda a sua base arquetípica. [...]

Nos sonhos, a parte da personalidade que regrediu é geralmente representada como um eu-criança ou um eu-animal vulnerável, jovem e inocente (não raro feminino) que permanece vergonhosamente oculto. Seja qual for a sua encarnação particular, esse "inocente" remanescente do eu total parece representar um núcleo do espírito pessoal imperecível da pessoa - o que os antigos egípcios chamavam da "alma-Ba", ou a Alquimia, o espírito alado vitalizante do processo de transformação, isto é, Hermes/Mercúrio. Esse espírito sempre foi um mistério, uma essência da individualidade que nunca é totalmente compreendida. É a essência imperecível da personalidade - a que Winnicott se referia como o "Verdadeiro Eu" e que Jung, buscando um conceito que reverenciaria as suas origens transpessoais, chamou de Self. A violação desse núcleo interior da personalidade é inconcebível. Quando outras defesas falham, as defesas arquetípicas não medirão esforços para proteger o Self - chegando mesmo ao ponto de matar a personalidade que abriga esse espírito pessoal (suicídio).