sábado, 22 de fevereiro de 2014

Ancestralidade: raízes do homem - C. G. Jung

Texto de C. G. Jung retirado do livro "Memórias, sonhos, reflexões"

Tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos que já existiam na linguagem dos antepassados. O "novo" na alma individual é uma recombinação, variável ao infinito, de componentes extremamente antigos. Nosso corpo e nossa alma têm um caráter eminentemente histórico e não encontram no "realmente-novo-que-acaba-de-aparecer" lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se encontram parcialmente realizados. Estamos longe de ter liquidado a idade média, a Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências de nossa psique a respeito deles. Entrementes, somos lançados num jato de progresso que nos empurra para o futuro, com uma violência tanto mais selvagem quanto mais nos arranca de nossas raízes. Entretanto, se o antigo irrompe, é frequentemente anulado e é impossível deter o movimento para frente. Mas é precisamente a perda de relação com o passado, a perda das raízes, que cria um tal "mal-estar na civilização", a pressa que nos faz viver mais no futuro, com suas promessas quiméricas de idade do ouro, do que no presente, que o futuro da evolução histórica ainda não atingiu. Precipitamo-nos desenfreadamente para o novo, impelidos por um sentimento crescente de mal-estar, de descontentamento, de agitação. Não vivemos mais do que possuímos, porém de promessas; não vemos mais a luz do dia presente, porém prescrutamos a sombra do futuro, esperando a verdadeira alvorada. Não queremos compreender que o melhor é sempre compensado pelo pior. A esperança de uma liberdade maior é anulada pela escravidão do Estado, sem falar dos terríveis perigos aos quais nos expõem as brilhantes descobertas da ciência. Quanto menos compreendemos o que nossos pais e avós procuraram, tanto menos compreendemos a nós mesmos, e contribuímos com todas nossas forças para arrancar o indivíduo de seus instintos e de suas raízes: transformando em partícula da massa, obedecendo somente ao que Nietzsche chamava o espírito da gravidade.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Da emergência espiritual à crise espiritual - Satanislav Grof

Texto retirado do livro "A tempestuosa busca do Ser" de Christina Grof e Stanislav Grof.

Às vezes, o processo do despertar espiritual é tão sutil e gradual que é quase imperceptível. Depois de um período de meses ou anos, uma pessoa olha para trás e percebe que houve profundas mudanças na sua compreensão do mundo, dos valores, dos padrões éticos e das estratégias da vida. Essa mudança pode começar pela leitura de um livro que contenha uma mensagem tão clara e convincente que seja impossível ignorá-la. [...]

Outras vezes, a consciência espiritual invade a vida da pessoa na forma de percepções profundas e variadas de certas situações do cotidiano. [...] Para muitas, o ingresso no campo transcendental tem se dado pela arte. 

Nenhuma dessas pessoas pensará novamente que está completamente isolada. Todas tiveram experiências intensas e convincentes que as transportaram para além das restrições de seus corpos físicos e dos conceitos limitados a respeito de si mesmas para uma conexão com algo exterior.

No entanto, quando a emergência espiritual é muito rápida e dramática, esse processo natural torna-se uma crise, e a emergência transforma-se em emergência espiritual. Pessoas que passam por essa crise são bombardeadas por experiências interiores que desafiam abruptamente suas antigas crenças e seu jeito de ser; seu relacionamento com a realidade modifica-se muito depressa. De repente, sentem-se incomodadas em seu antigo modo familiar e podem achar difícil atender às exigências da vida diária. Podem ter grandes problemas em distinguir seu mundo interior visionário do mundo exterior da realidade diária. Fisicamente, parecem experimentar energias vigorosas correndo pelos seus corpos, causando tremores incontroláveis. 

Medrosas e persistentes, as pessoas parecem gastar muito tempo e esforço tentando controlar o que sentem como se fosse um acontecimento interior opressivo. E podem sentir-se impelidas a conversar sobre suas experiências e descobertas com qualquer um que esteja a seu alcance, parecendo fora de contato com a realidade, incoerentes e messiânicas. Porém, quando lhe oferecem compreensão e esteio, são, de modo geral, cooperativas e gratas por terem alguém com quem possam compartilhar sua jornada. [...]


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Outras vidas, outros eus - Roger Woolger

Texto retirado do livro "As várias vidas da alma" de Roger Woolger.

Embora o termo "complexo" tenha se estabelecido há décadas no jargão da psicologia popular, a maioria das pessoas tende a resistir à ideia de que a personalidade é múltipla. Isto pode ser compreensível à luz de histórias impressionantes como The three faces of eva [As três faces de eva] ou filmes hollywoodianos sensacionalistas, como The Exorcist [O Exorcista] ou The Entity [A Entidade]. Nossa resistência à ideia também se deve ao fato de a expressão "personalidade múltipla" ter sido usada quase que exclusivamente como um rótulo clínico para designar um estado de grave dissociação ou divisão da personalidade que beira a loucura.

A esquizofrenia, embora erroneamente confundida com uma divisão ou perturbação da personalidade múltipla, é uma doença onde muitas vozes ou eu imaginários procuram influenciar ou minar a sensação de um paciente ter uma personalidade integrada, uma identidade do ego. (Na verdade, a principal diferença, falando em termos clínicos, entre a esquizofrenia e a personalidade múltipla é que, neste último caso, as diversas formas da personalidade estão rigorosamente compartimentalizadas, cada qual ignorando a outra. Um esquizofrênica, ao contrário, é plena e devastadoramente cônscio, a maior parte do tempo, de que tem muitas vozes ou eus dentro de si, mas não controla nenhum deles.)

Quando o transpessoal é despertado - Piero Ferrucci

Texto retirado do livro "O que podemos vir a ser" de Piero Ferrucci. Introdução ao capítulo intitulado "A patologia do sublime - Riscos e distorções na exploração do supraconsciente". 

Por estranho que possa parecer, quando a inspiração transpessoal começa a se fazer sentir, a personalidade às vezes encontra maneiras de neutralizá-la. O reino da personalidade tem suas própria leis, metas e modos de funcionamento. Em muitos casos, o irromper da energia transpessoal causa uma expansão e uma transformação que são sentidas como benéficas e prazerosas. Em outros, porém, o impacto revolucionário do influxo de novas energias no quadro preexistente pode ser sentido como uma ameaça desconfortável.

Mesmo carregadas de um forte sentido de correção, as inspirações transpessoais têm a necessidade de que a personalidade como um todo se rearranje para ajustar-se aos objetivos e leis do Self. Neste caso, os velhos hábitos devem ser abandonados, os bloqueios psicológicos corajosamente encarados; novas e maiores responsabilidades devem ser assumidas e um ritmo não familiar deve ser adotado - em outras palavras, uma série de grandes mudanças põe-se a caminho.

As mudanças provocadas pela inspiração supraconsciente constituem, é claro, a consequência natural do desenvolvimento geral de uma pessoa. Mais cedo ou mais tarde, a crisálida torna-se borboleta; mas a crisálida pode de alguma forma lutar contra o processo de mudança. Crescer é compreender aquilo que não fomos capazes de conceber, sentir o que nunca sentimos, fazer o que nunca fizemos antes. É ousar o que nunca ousamos. Pode não ser, portanto, necessariamente prazeroso. Obriga-nos a abandonar nossa zona de conforto, a progredir em direção ao desconhecido, a encarar a formidável presença do Self.