Dissolução do eu na totalidade.
Luis Paulo B. Lopes
Uma grande dificuldade de falar sobre experiências enteogências é a limitação da linguagem pra exprimi-las. Ao assumir o desafio de escrever sobre elas, devo estar consciente de que nem de longe conseguirei alcança-la com minhas palavras. Além disso, sei também de que a linguagem que utilizarei será melhor assimilada por aqueles que tem alguma experiência com os enteógenos, pois as palavras poderão remeter às lembranças de suas próprias experiências. Entretanto, meu objetivo é falar a todos os interessados pelo assunto, independentemente se já tiveram ou não experiências da natureza que tentarei descrever. Àqueles que nunca exploraram as profundezas de seu Ser pelo viés da experiência enteogênica, fica aqui uma tentativa de demonstrar o indemonstrável. O que escrevo nas linhas que seguem não é, de maneira nenhuma, uma tentativa de oferecer um panorama definitivo sobre a experiência de morte do eu, é antes de tudo, uma forma particular de descrever algo que vivi. Portanto não tenho a pretensão de definir uma verdade, se é que isso é possível, mas apenas de falar livremente.
A morte simbólica do eu, onde transcende-se os limites da personalidade, é uma experiência de grande intensidade, onde somente a entrega pode garantir uma morte tranquila. Quando o eu, na eminência de morte, tenta se agarrar em sua identidade, a experiencia pode assumir um aspecto terrificante, onde é comum a vivência da loucura ou de medo extremo por exemplo. Essa experiência de luta contra a morte poderia sem classificada como uma espécie de inferno consciencial. Mas se ao invés da luta, o navegante se entrega à morte com confiança, a passagem é feita de maneira tranquila e vive-se uma experiencia paradoxal onde o eu identifica-se com a totalidade. A parte vê a si mesma como sendo o todo sem deixar de saber que é parte. Os limites de identidade do eu se dissolvem e o individuo se transforma na totalidade. Nesse momento não existe mais um individuo vivendo uma experiência, ao invés disso, o indivíduo torna-se a própria experiência. A natureza paradoxal desse tipo de experiência faz com que seja ainda mais difícil falar sobre ela, a linguagem pode se ver presa em aparentes contradições que apenas se resolveriam com a vivência da experiência como suporte de compreensão.
Navegar dentro de si nessa profundidade é uma verdadeira aventura, com riscos e armadilhas a serem vencidos, e tesouros a serem descobertos. As armadilhas existem de fato, e a constante incursão no desconhecido pode revela-las de maneira amarga. Me recordo aqui de Chogyam Trungpa Rimpoche, grande mestre budista, quando fala dos três senhores do eu, no livro: Além do materialismo espiritual. O senhor da forma, o senhor da palavra e o senhor da mente. Os três senhores são os guardiões da ilusão da individualidade. Durante o processo de dissolução do eu na totalidade não é incomum encontramos com eles. Quando o eu na eminencia de morte luta para não morrer, está manifestando os três senhores de alguma forma.
No que diz respeito ao senhor da forma, Trungpa o descreve da seguinte forma:
"O Senhor da Forma refere-se à procura neurótica de conforto físico, segurança e prazer. A tecnológica e altamente organizada sociedade em que vivemos reflecte a nossa preocupação em manipular o que fisicamente nos rodeia, de modo a proteger-nos contra as irritações dos brutais, inconstantes e imprevisíveis aspectos da vida".
O senhor da forma, portanto, refere-se ao controle. Durante a experiência de dissolução do eu na totalidade, ao começar a perder todas as suas bases de referência e mergulhar profundamente no desconhecido, o indivíduo pode tentar agarra-se com todas as forças em algo conhecido: no tempo linear, no ambiente físico em que se encontra, etc... Essa é uma manifestação do senhor da forma, tentando impor com as forças que lhe restam a ilusão de individualidade. Ceder a esse senhor nesse momento transformará a experiência em um inferno consciencial bastante perturbador, já que é impossível voltar atrás em uma experiência enteogênica de grande intensidade. Não há possibilidade de cessar o fluxo que carrega o ser durante essa viagem e a única coisa a ser feita é se deixar levar, aceitar.
O senhor da palavra, segundo Trungpa:
"O Senhor da Palavra refere-se ao uso do intelecto em relação ao nosso mundo. Adoptamos conjuntos de categorias que depois usamos como utensílios, como modos de lidar com os fenómenos. Os produtos mais desenvolvidos desta tendência as ideologias, os sistemas de ideias que racionalizam, justificam e glorificam as nossas vidas".
Algo não tão incomum é a tentativa de racionalização e conceituação dos insights recebidos nas experiências enteogênicas profundas. Durante a experiência, o indivíduo pode receber uma enxurrada de insights e ficar vislumbrado com a grandiosidade do entendimento que se abriu diante de si, entretanto o entendimento muitas vezes, além de ser paradoxal, é também de natureza experiencial. A tentativa de racionalizar e conceituar um entendimento paradoxal pode fazer com que o indivíduo vivencie uma experiência de loucura bastante perturbadora, pois a razão não é capaz de conciliar os opostos. A conciliação somente pode ocorrer através de aceitação e da entrega, isso é, de maneira vivencial.
Quanto ao senhor da mente:
"O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência para se manter ciente de si mesma. O Senhor da Mente governa quando disciplinas psicológicas e espirituais são usadas como meio de manter a auto-consciência, de conservar o sentimento de si".
A armadilha imposta pelo senhor da mente é o apego pela própria identidade. A terceira porta para o inferno se manifesta na tentativa desesperada do eu em se auto afirmar mediante sua eminente dissolução. Durante o processo de morte, o medo do desconhecido e a sensação da possibilidade da auto-extinção podem fazer com que o individuo tente se agarrar desesperadamente a sua própria identidade. Entretanto o destino dessa luta é o desespero e a perturbação, já que nesse momento da experiência não é possível interromper o fluxo que o leva à totalidade. Quanto mais se prolongue a luta, quanto mais apegado o eu esteja à identidade, tanto mais fundo mergulhará no inferno consciencial.
Meu comentário sobre as armadilhas que podem estar presentes em uma experiência enteogênica de dissolução do eu pode parecer assustador, entretanto é possível que o indivíduo naturalmente assuma uma postura de entrega e tenha uma morte simbólica tranquila, sem se deparar com nenhuma dessas armadilhas. Entretanto, a constante incursão nas nossas profundezas em algum momento pode revelar de maneira amarga que eles estão lá e são bastante fortes. Minhas colocações sobre os três senhores, tem apenas como objetivo comentar sobre as possíveis vicissitudes do processo e apresentar alternativas para, ao nos depararmos com elas, estarmos um pouco mais preparados. Entrega, confiança, paciência, não-julgamento... são a bússola do navegador de suas próprias profundezas.
Mas não é só de desafios que se trata a experiência enteogênica. Quando me referi que a experiência enteogênica nessa profundidade é uma verdadeira aventura, também havia dito que existia um tesouro a ser encontrado. O tesouro do êxtase espiritual é a totalidade e o potencial transformador que esse contato tem em potencial. Essa morte, sem dúvida nenhuma, traz um renascimento importante na vida daquele que o vivencia. O eu é desfragmentado na experiência e ao se re-fragmentar traz consigo novos sentidos pra vida, novas formas de se enxergar a si mesmo, as pessoas e o mundo.
Gostaria de finalizar com um poema que escrevi sobre a experiência de dissolução do eu na totalidade, que penso resumir muito bem todas as questões que foram abordadas nesse texto:
O acordo do esquecimento
Concebendo a entrega como saída
Me vi numa situação
Em que não há alternativa
Se opto por controlar
O inferno abre sua porta
Se me entrego por completo
Talvez me ofusque
E escolha a ida sem volta
Se me deixo totalmente solto
Mergulho no mar
Do verdadeiro gozo
O paradoxo me eleva
Abre o céu
E me transforma no Todo
Para não cair no abismo profundo
Com o Êxtase firmo um acordo
Daqui não levo nada
Nenhuma pedra de seu tesouro
Permito-me observar
De forma ausente e presente
E tudo que se abre
Fecha-se imediatamente
Levo daqui
Nada além do contentamento
Seus segredos encerraram-se
Naquele mesmo momento
Mas em mim permanece
Algo além do efêmero
A joia concedida
No acordo do esquecimento
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