sábado, 27 de dezembro de 2014

O pai devorador - Murray Stein


Texto de Murray Stein. 
Obs: Não tenho certeza sobre a fonte, por isso este texto está sem referência bibliográfica.

A mãe devoradora tornou-se uma realidade arquetípica bastante conhecida no mundo da psicologia profunda. Jung descreve a personalidade devorada pela mãe em seu aspecto neurótico (CW 9,11 § § 20-22); suas formas extremas aparecem como psicoses endógenas, a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva. Já o arquétipo do pai devorador não é tão familiar. Nesse caso, poderíamos dizer que sua forma extrema seria uma psicose social.

Se o arquétipo paterno tem como um polo o pai guardião de seus filhos e poderosa fortaleza contra as ameaças do mundo exterior, tem como outro o pai devorador, na sua rígida insistência quanto a formas convencionais de pensamento, de sentimento e comportamento. O reflexo fenomenológico desse lado negativo do arquétipo do pai é uma consciência vinculada e submersa em convenções e hábitos, e um respeito ao dever definido pelas normas coletivas prevalecentes. Um dilúvio gástrico de valores, padrões de pensamento, gostos, disposições, atitudes e opiniões da cultura predominante dissolve qualquer traço de experiência individual e de reação espontânea.

A história “A Morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoi, constitui um retrato magistral de uma consciência devorada pelo pai. Tolstoi apresenta Ivan como :

"filho de um oficial cuja carreira em Petersburgo, através de vários ministérios e departamentos, foi do tipo que conduz um homem a posições de que, devido ao seu longo tempo de serviço e ao cargo oficial a que chegou, não pode ser dispensado, embora seja óbvio que não sirva para executar nenhum serviço útil, e para quem, em conseqüência, são especialmente criados postos que, embora fictícios, fazem jus a salários nada fictícios, de seis a dez mil rublos, nos quais permanece até a idade avançada". 

(Leon Tolstoi, The Cossacks, Penguin Classics, 1960, pág. 110 ). 

Na história, não se faz menção à mãe de Ivan. Seu pai é claramente uma representação do Senex na forma do velho rei que deveria morrer mas continua a reinar obstinadamente. 

Dois pormenores salientam a vincularão de Ivan com seu pai. O primeiro é uma quantia em dinheiro que o pai lhe dá depois que conclui o curso de Direito. Com esse dinheiro compra o seu enxoval: encomenda roupas da “Scharmer’s” e adiciona ao seu guarda-roupa outros “pertences da nova moda - um baú, roupa de linho, material de uso pessoal e de barba e uma manta de viagem - tudo encomendado e comprado nas melhores lojas”. (Pag. 111). Em posse dessas coisas, Ivan vai para as províncias “tomar o posto de oficial confidencial de justiça e emissário do governador, que seu pai lhe conseguiu”. Assim, permanecendo evidentemente nos bastidores, o pai abre as mandíbulas para a entrada de Ivan nas estruturas do poder estabelecido.

Ivan também, como seu pai, entra para o serviço público. Sua profissão é o Direito. O mundo dos Tribunais é o mundo do pai, em seu papel de repressor e de supervisor. Os Tribunais deliberam sobre as queixas de uma maneira mais ou menos ordenada, provêm canais para a acusação e apelação e interpreta as leis do país. Como autoridade final em questões do certo e do errado, do permitido e do proibido, reforçam os valores coletivos da sociedade. Em resumo, mantêm e apoiam as atitudes e valores interligados que formam a espinha dorsal de uma cultura.

Na personalidade de Ivan encontramos um estudo altamente diferenciado de uma personalidade devorada pelo pai. O autor comenta:

"Como estudante, já era exatamente como deveria permanecer durante o resto de sua vida: Um sujeito alegre, capaz, de boa natureza e sociável, embora escrito na observância do que considera seu dever; e considerava seu dever tudo o que era considerado como tal por quem tivesse autoridade sobre ele". (pág.110) 

Especialmente digna de nota nessa passagem é a estabilidade e intransigência da atitude de Ivan: o que era enquanto estudante, deveria continuar sendo durante o resto de sua vida. Como veremos adiante essa espécie de permanência é um objetivo primordial do pai devorado Arquetípico. Um segundo aspecto a se observar é o que acontece com a consciência de Ivan:

"Como estudante de Direito, tinha feito coisas que anteriormente considerava vis e que ao mesmo tempo fizeram-no sentir desgosto por si mesmo; mas depois, quando viu que tal conduta era praticada por pessoas de alta posição e que não era por elas consideradas erradas, passou a considerar tais ações não exatamente certas, mas a esquecê-las, simplesmente, de maneira total, ou a não se perturbar com a sua lembrança".

As reações de consciência individual são abdicadas em favor das autoridades “externas”, pelos gostos, valores e inclinações daqueles que representam as forças dominantes da consciência coletiva. Na adaptação à assim chamada realidade externa, Ivan é um gênio.

Tostói leva esse desenvolvimento da coletivização da consciência de Ivan a um clímax magnífico quando o faz mobiliar seu novo apartamento, escolhendo cada item com ansioso cuidado, atirando-se na cama a agonizar entre a escolha de um sofá ou de outro, perdendo o interesse pelos procedimentos do Tribunal, enquanto sua mente vagueia por assuntos de cortinas, tapetes e molduras de quadros. Ivan tem a fixação determinada dos possuídos. O resultado é, em sua imaginação, encantador e ideal. Na realidade no entanto, 

"era apenas o que se vê comumente nas casas de pessoas que não são exatamente ricas mas que gostariam de parecê-lo, e assim só conseguem parecer com as outras da própria espécie". (Pág. 121)

O que mais precisamente deveria expressar sua individualidade traz à luz o seu aspecto mais coletivo.

Significativamente, o relacionamento com sua mulher deteriora na medida em que seus êxitos mundanos aumentam e ele se torna cada vez mais absorvido pela vida dos Tribunais e pelo redemoinho da competição social. Finalmente, resolve essa área problemática de sua vida com uma política “racional”:

"Requeria dele (i.é. do casamento) somente as conveniências que lhe podia dar - uma mulher para cuidar de sua casa, da comida e da cama - e, em particular, a manutenção das aparência tal como requer a opinião pública. De resto, procurava uma amabilidade alegre e, se a encontrava, ficava bastante gratificado; mas se encontrasse antagonismo e impertinência, retirava-se prontamente para o seu outro mundo de deveres oficiais, e lá encontrava satisfação". (Pág. 116)

Na medida em que Ivan se retira do mundo feminino da esposa, da filha e da família, sua vida torna-se progressivamente menos criativa e sem alma. Observamos como ele sufoca todos os impulsos inconsciente de atividade individual, como compartimentaliza e sufoca seus “filhos” não - ortodoxos e não - convencionais, como impõe regras e abstrações aos impulsos arbitrários de Eros. Ivan é um homem de muitas relações, mas sem amigos. A ordem, a pontualidade e o hábito tiranizam-no. No Tribunal e fora dele sua atitude é severamente profissional: 

"Levantava-se às 09:00, tomava seu café, lia o jornal e então vestia seu traje comum e ia para o Tribunal. Lá entrava prontamente dentro de sua armadura bem ajustada e preparava-se para lidar com petições e inquirições na repartição com a própria repartição, e a seções públicas e administrativas. Em todas essas coisas tinha que excluir tudo que possuísse alguma seiva da vida, que sempre perturba a rotina regular dos negócios oficiais e não admitia qualquer espécie de relação com as pessoas exceto as oficiais e mesmo assim em termos oficiais". (Pág. 123)

Com cerca de 45 anos, no ápice de sua carreira profissional, Ivan é acometido por uma doença misteriosa e indiagnosticável. Na medida em que a doença caminha para o seu fim, puxando sobre ele lentamente a morte, como uma mortalha, Ivan percebe uma verdade sobre a vida: 

"Ocorreu-lhe que aquela sua propensão vagamente detectada para lutar contra o que as pessoas mais bem colocadas consideravam bom, aqueles impulsos vagamente perceptíveis que tinha suprimido, poderiam ter sido a única coisa verdadeira e todo o resto falso. E seus deveres profissionais, sua família e todos os seus interesses sociais e oficiais poderiam ter sido falsos". (Pág. 157)

Aquela “propensão vagamente detectada” e aqueles “impulsos vagamente perceptíveis”, que ficaram cada vez mais soterrados pelos sedimentos endurecidos de sua atividade unilateral são as vozes semi-articuladas da infância, o movimento de impulsos criativos ( e destrutivos) a inclinação inerente para desenvolver uma visão individual referem-se às vozes do inconsciente, aquela mãe eterna das formas renovadas de vida, “a raiz misteriosa de todo o crescimento e mudança” (Jung C W. 9,1, § 172). São os filhos devorados.

Deve-se acrescentar que também devorado pelo pai é aquele que se situa no polo oposto de Ivan isto é, o anti-autoritário obsessivo, o excêntrico deliberado, o não conformista sistemático devorado não por identificação com a consciência coletiva mas por uma grave alergia a ela. Esse tipo contrário acha-se também impossibilitado de experimentar a vida individualmente. Seu complexo paterno negativo o retém no estômago.

A mitologia grega, na figura de Urano, Cronos e Zeus, apresenta um quadro diferenciado do fundamento arquetípico de uma consciência devorada pelo pai. Todos os três são deuses mas não apenas deuses comuns: São deuses dominantes, reis, governantes, indisputados. Todos os três também não são apenas pais, mas pais devoradores.

Cada um desses três aspectos do pai devorador apresenta uma nuance diferente no modelo arquetípico. Urano é talvez o mais maligno, e certamente, o mais arcaico e feroz dos três. No entanto ele não devora seus filhos diretamente, mas empurra-os de volta à mãe Gaia, a matéria, e aí os aprisiona. Urano, o céu, defende a sua posição mantendo seu inconsciente jovem e ligado à mãe encapsulado numa embaçada e cotidiana matéria. Observa-se nessa configuração arquetípica uma enorme ruptura entre espírito e matéria, entre entendimento simbólico e literalismo concreto, entre pai e mãe. O espírito do tempo está tão longe do alcance e tão fora de questão que toda criatividade e inovação ficam contidas na esfera da manipulação prática com o meio ambiente material.

A consciência dominada por Urano resulta em convencionalismo através de uma grande inconsciência: “sempre foi feito desse jeito”, “isto é o que me ensinaram quando criança”. A pessoa é inconsciente de suas atitudes e pressuposições e revela uma quase que total falta de autoconsciência, assim como uma pobreza para a percepção interior de seus próprios fundamentos psíquicos. Convenção, tradição e valores coletivos são inconscientemente assimilados, e o novo, o filho, o desenvolvimento criativo futuro, permanecem encerrados na mãe. 

Nesse modelo arquetípico, a consciência é extremamente primitiva; a consciência individual é praticamente inexistente, enquanto a consciência de grupo é esmagadora em sua ascendência. Jung, de acordo com Lev-Bruhl, chama esse estado de participation mystique com o grupo.

Urano é também autor de sintomas psicossomáticos: o filho sufocado se materializa e a base somática (Gaia) sobrecarrega-se com o peso. Tumores, desordem gástricas, vários sintomas histéricos aparecem misteriosamente, sobrevem o sofrimento físico e material; o corpo sofre, a compreensão da mente falha, e o drama se desenrola na escuridão da physis . Os povos primitivos sabem como tratar tais desordens: O shaman, ou sacerdote, ou médico feiticeiro confrontam os espíritos da doença; voa para “o outro lado” e os descobre lá. Este é o método de dragar os filhos para fora da matéria e tratá-los como realmente são, isto é, espíritos.

Na sangrenta vitória de Cronos sobre seu pai celeste, com a subseqüente emergência de uma nova ordem, devemos observar um motivo central no mitologema do pai devorador: a mudança advém do ato revolucionário do filho. O puer salta para o alto e puxa para baixo o senex. Um dos filhos de Urano liberta-se e castra brutalmente o pai.

Freud colocou o medo da castração no filho. Nosso mito o colocaria mais propriamente no pai: o pai, não o filho, é a vítima da castração. Se o perigo para o filho (Cronos) é repressão e aprisionamento, a ameaça para o pai é a castração.

Castração é o ato supremo de desvirilização e humilhação. É também a perda da capacidade masculina de fertilizar e engravidar ; é a esterilização do espírito. Mas, no nosso mito, o significado vai ainda mais longe; é o ato heróico que separa o céu da terra e desse modo liberta os filhos do céu de sua prisão na terra. Significa portanto um processo de espiritualização, de criação de psique. Conteúdos até então encerrados na matéria então se tornam personalidades titânicas. Essa tendência à espiritualização irá caracterizar também, como veremos adiante, o ato de Cronos devorando os filhos. 

Cronos, cujo nome significa “tempo”, traz um aspecto essencial à consciência de ego. Diferente de Urano, que é o céu eterno e infinito. Cronos está subjacente à nossa percepção do passado-presente-futuro, ou seja, nossa orientação no tempo. A castração de Urano, em conseqüência, significa o fim da reprodução cega através da eternidade, da fecundidade puramente instintiva, das eras se sucedendo para sempre, levadas por um espírito inconsciente de si mesmo. Depois da castração de Urano, essa espécie de criatividade não é mais possível. O gênio entra na era do tempo - e da autoconsciência. O instrumento castrador de Cronos torna-se a foice do Pai Tempo. 

Se Cronos é primeiro puer e portador do novo espírito, torna-se rapidamente o pai devorador. Fica sabendo, por intermédio de seus pais, que um de seus filhos está destinado a vencê-lo. Contra isso ele finca seus pés e, por meio de estratagema de devorar seus filhos, tenta resistir à lei da vida que determina que os filhos enterrem seus pais. O mitologema do pai devorador repousa sobre o princípio de revolução eterna, o filho substituindo o pai, o puer derrotando o senex, o novo destruindo o velho. É um mito de transformações. Cronos, enquanto puer que assume o poder, sabe da infidelidade e da energia dos jovens, decidindo-se então ao seu avanço dinâmico.

Enquanto a estratégia de Urano é manter seus filhos, rivais em potencial, inconscientes através da repressão na matéria, a de Cronos é incorporá-los e assim espiritualizá-los ou psicologizá-los, desse modo separando-os de suas origens instintivas. Através desse processo de espiritualização, os filhos são destituídos de seu radical pode transformador.

Na cultura, as dominantes prevalecentes da vida coletiva poderiam dizer: “forneça um caminho estreito pelo qual o jovem pode progredir na sociedade e garantir um lugar na ordem estabelecida; torne inevitável que a alternativa seja o aniquilamento e o fracasso completos”. Encontramos o extremo dessa situação em certos períodos da história da China, em que o único caminho para a aceitação social estava na rígida observância de um sistema labiríntico de códigos e costumes. Em formas mais branda, essa atitude da cultura pode parecer inclusive generosa: a sociedade mostra uma disposição a incorporar a juventude em suas estruturas estabilizadas. Mas essa estratégia é efetivamente letal, porque visa fazer de seus cidadãos homens totalmente dominados pela cultura e pelo meio social, desligados das forças criativas ( e destrutivas) do inconsciente. Ivan Ilitch ilustra esse desastre. Assim fazem os “bons cristãos” que não têm sombra e que distorcem todos os conteúdos inconsciente em objetivos espirituais e positivos. Através dessa estratégia as dominantes da consciência coletiva mantém suas posições e preservam o seu poder, mas simultaneamente devoram o verdadeiro filho a possibilidade de um futuro desenvolvimento em novas direções. 

Sob Cronos, a consciência afina-se perfeitamente aos valores reinantes e às atitudes de um coletivo externo, seja ele uma sociedade secular como um todo, ou como uma seita religiosa, um partido político, ou o que for. Ela é ameaçada por movimentos dentro do inconsciente, por impulsos “infantis”, pensamentos “loucos”, reações “imaturas”. Ela ou rejeita esses filhos indesejáveis ou mais freqüentemente tenta encontrar neles um conteúdo espiritual positivo, reações “infantis”, idéias “interessantes”, movimento de alma “criativos”. Esse ato de separar positivo e negativo, espiritual e instintivo, criativo e destrutivo, é Cronos engolindo seus filhos. Porque o futuro na maioria das vezes reside nos filhos obscuros, que naturalmente colocam uma ameaça à ordem estabelecida das coisas; “o destino de um homem é sempre moldado no ponto em que reside o seu medo”. ( Aniela Jaffé, “The Creative Phases in Jung’s Life”, Spring 1972, pág. 164). 

A consciência determinada por Cronos visa torcer todos os interesses, paixões e idéias espontâneas, colocando-os a serviço de seus próprios objetivos conscientes. O que se engole visa alimentar e promover a própria vida; O processo digestivo rejeita os “refugos” e absorve o alimento. Assim, nos esforçamos para trabalhar melhor, inventamos para vender, criamos para colher a recompensa da fama individual e do prestígio, naturalmente negando todo o tempo o aspecto sombrio do desejo de poder. Tudo serve para construir o ego; os filhos do inconsciente devem sustentar, como Atlas, um ego nervoso e inseguro.

Em todas as suas formas, o arquétipo do pai devorador pressiona a consciência em direção ao convencionalismo. Sob Cronos, a consciência é engolida pelo espírito da época e perde contato com a vida instintiva, a terra, Rea. Essa ruptura radical entre consciente e inconsciente serve aos interesses dos dominantes prevalecentes da cultura, destituindo a consciência das reações instintivas e irracionais. 

Cronos é secretamente aliado da mãe terra, Gaia contra sua própria esposa e filhos: Gaia previne-o da ameaça de um futuro filho. Assim, num certo sentido, ambição de Cronos enraíza-se na mãe, ou talvez mais precisamente, em seu animus. Essa aliança é típica da psicologia do puer e contribui em parte para suas mudanças, muitas vezes radicais e extremamente rápidas, para se tornar senex. Se por um lado o puer é veículo do espírito e traz uma nova era, por outro é aliado da matéria e por isso fatalmente tentado a concretizar suas fantasias e agarrar-se a essas concretizações. Sua fantasia heróica, quando expressada no concreto, transforma-se em tirania espiritual . A consciência devorada por Cronos mantém-se, em conseqüência, por intermédio de duas forças: por um lado, seu aspecto, conservador de senex está profundamente enraizado no instinto, na mãe terra, e por outro, suas forças para a mudança encontram-se desprovidas de sua conexão dinâmica.

Mas Cronos pode ser logrado. É enganado, no entanto, não por um de seus inteligentes filhos, mas por Rea, que nesse caso exerce o papel de Grande Mãe em seu aspecto de protetora dos filhos. Rea engana Cronos com uma pedra envolvida em uma manta e envia o filho verdadeiro, Zeus, para uma caverna protegida, em Creta, onde é criado por três ninfas de freixo do monte Dicteu. (C.Kerényi, The Gods of the Greeks, London, 1961, pág. 91). Através da mediação de Rea, o movimento em direção à mudança, através do filho revolucionário, dá um novo salto à frente. O ciclo é posto em movimento de novo mas, assim como Cronos é diferente de Urano, o mesmo acontece com Zeus em relação a Cronos. O desenvolvimento dentro desse arquétipo não é pois puramente cíclico, mas de natureza espiral, e a cada volta adquire novas características.

Zeus conduz ao poder os deuses olímpicos, e o velho panteão titânico é encerrado no Tártaro. Mas Zeus, também revela possuir certos traços de pai devorador. Sua primeira consorte é Métis, filha dos Titãs Oceano e Tétis. Prevenido por Gaia e por Urano do perigo que um futuro filho dessa união poderia apresentar, Zeus engana Métis, grávida, introduzindo-a em seu estômago e conservando-a lá. Assim, devora seus filhos potenciais. Essa estratégia parece efetiva, pois Zeus mantém seu poder até o fim da era mitológica. Ele mesmo dá à luz a filha de Métis, Atenas; em alguns relatos ela salta inteiramente armada de sua cabeça. Torna-se mais tarde sua conselheira mais sábia e mais confiável.

Em contraste com Urano e Cronos, Zeus tem vários filhos que não devora. Geralmente gosta de seus filhos e empenha-se em cuidar deles. Mas o mito de Zeus ingerindo Métis mostra que ele, como seus pais anteriormente, visa estabilizar o ciclo revolucionário, mantendo-se na posição dominante.

Sob a influência de Zeus, a consciência chega a um grau muito maior de flexibilidade do que sob a de Cronos. Observando-se os filhos de Zeus que puderam viver, pode-se notar quão grande tolerância pelos opostos tinha o mundo olímpico: Apolo e Dionísio, Atenas e Ares, Artemis e Helena. A Ilíada fala das forças profundas do Olimpo; Zeus reina, mas sua mão é relativamente leve. Sob a influência de Zeus, a consciência é flexível o suficiente para integrar tudo, menos as verdadeiras idéias e forças revolucionárias. Vemos emergir o ideal grego do exercício da criatividade dentro de uma estrutura de ordem e harmonia balanceadas. Os impulsos e as necessidades que não podem ser integrados, ou os filhos verdadeiramente revolucionários, são mantidos dormentes e meramente potenciais em sua mãe encapsulada; ficam contidos na barriga de Zeus.

Se a estratégia de Urano é trancar os filhos na matéria e longe do espírito, e a de Cronos é engoli-los, em espírito, cortando-os do instinto, a estratégia de Zeus é incorporar a anima em espírito e através disso privá-la de sua fertilidade, da capacidade de se engravidar de crianças revolucionárias. Uma vez que integrou a anima dessa maneira, Zeus pode permitir-se tolerar seus outros filhos. Uma capacidade de reflexão sobre os impulsos e forças divergentes e seu acomodamento caracteriza seu reinado. Atenas, a filha de Métis e de Zeus, nascida da cabeça de seu pai, incorpora essa capacidade: restringe a agressividade impulsiva, encoraja a reflexão e o pensamento estratégico, e entre os heróis favorece o esperto Odisseu. Atenas é filha do pai, a eterna virgem, a anima do espírito, a vida voltando-se para dentro numa reflexão (cf. René Malamud, “The Amazon Problem”, Spring 1971).

Através de sua relação com Métis-Atenas, o aspecto senex de Zeus, o pai devorador nele próprio, é melhorado e torna-se menos extremo. Essa discriminação da polaridade puer-senex em Zeus contribui para seu êxito onde Cronos falhou. Sob o signo de Zeus, a consciência é capaz de conter, de tolerar e deixar viver as coisas num grau bem maior do que sob Cronos, caso em que todos os filhos têm que ser incorporados em espírito. Mas se o reinado de Zeus produz estabilidade, fá-lo a um certo preço: através do cancelamento da possibilidade de mudança revolucionária, por mais destrutiva que possa parecer no momento, um futuro criativo é também perdido. Assim, no desenvolvimento interno desse arquétipo, o senex mais ou menos tolerante, flexível e reflexivo, vence. É uma vitória e uma perda.

Um comentário:

Bernardo Souza disse...

Olá, este artigo do Murray Stein está no livro Pais e Mães - Seis Estudos Sobre o Fundamento Arquetípico da Psicologia da Família.