quinta-feira, 22 de junho de 2017

Quem conhece Deus pessoalmente - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Abençoado é aquele que conhece Deus pessoalmente. Que persevera com paciência enquanto atravessa a mais escura das noites. Pode a força lhe faltar e cair de joelhos; pode a esperança lhe abandonar e pensar que não há qualquer luz que o guie na escuridão. Pode se ver completamente só, no desamparo absoluto; perdido para sempre num labirinto sem fim. Pode entrar em desespero e se agarrar, em vão, a ilusões caducas, para logo vê-las escorrer entre os dedos. Pode se debater na lama, mortificado; abandonado pela fé. Mas esse que conhece Deus pessoalmente consegue encontrar, apalpando no escuro, aquilo que transforma a dor e o desespero em gratidão e amor. Pois se aconchega dentro do Coração do Pai Eterno, onde encontra consolo para tudo. Essa Pedra rubra transforma toda culpa em contrição; ódio em perdão; desapontamento em compreensão; reprovação em compaixão; humilhação em solidez. Todo peso se dissipa e a liberdade aflora de mãos dadas com a alegria. Vontade incontrolável de cantar pra Deus! A dor e o sofrimento são transformados num amor puríssimo e cristalino, e o coração transborda em gratidão! Coisa mais linda não há! Esse que conhece Deus pessoalmente não precisa acreditar, pois vive Nele; nesse Ser que está além de qualquer crença. Quem conhece Ele não precisa ser religioso; mas pode pertencer a qualquer religião. É verdade que todos acabam se esquecendo Dele pra se enrolar novamente na ilusão. Por algum motivo não é possível viver Nele o tempo inteiro. Mas esse que O conhece pessoalmente sempre acaba voltando ao aconchego do Lar, pois sabe escutar Seu chamado e conhece o caminho até Ele, através do próprio coração. É um afortunado que terá sempre uma Estrela pra lhe guiar; basta lembrar-se de olhar pro céu! Ela estará sempre lá por ele, indicando o caminho. É essa a Estrela que transforma fé em confiança, e confiança em otimismo diante da vida e da morte. Não é preciso acreditar em nada disso, pois há uma porta em cada coração, que leva direto ao Coração do Pai Eterno; basta abri-la e estar Nele. Por acaso tem como não chorar de gratidão por uma maravilha dessas?

Sobre o sacrifício: persona, sombra e Self - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

É como se tivéssemos que sacrificar os ideais mais elevados do homem civilizado, aos quais julgamo-nos eméritos representantes; aquelas virtudes coletivas que pensamos não somente possuir, mas que chegamos a confundir-nos com elas. Concordo com Jung quando afirma que a identificação com a persona é sempre um ato egoísta que tenta tirar alguma vantagem; já que através dela recebemos admiração, segurança, um lugar de valor no mundo. Com isso, ingressamos no paraíso da inconsciência; no alto de um platô sobre nuvens, onde não é possível ver o que há mais abaixo. Tentamos espremer o mundo para que caiba dentro de nossa própria cosmovisão e, assim, projetamos uma imagem do mundo como se este fosse imutável e previsível; ao mesmo tempo, supomos haver descoberto e encarnado o significado último de ser um homem civilizado. Protegidos da insegurança que anda de mãos dadas à eterna impermanência do fluir da vida através do tempo, evitamos cautelosamente a amarga consciência de estarmos perdidos em território misterioso e inexplorado. Livres dos conflitos morais que emergiriam implacáveis caso tivéssemos consciência de que o mal que combatemos no outro é o mal de nosso tempo, do qual estamos imersos até o pescoço. Acreditando cegamente que somos aceitos por inteiro, mesmo quando oferecemos ao mundo nossa face bela e ocultamos a terrível, e assim alienamo-nos da inexorável solidão inerente à condição humana e do abandono irrevogável que nos marca a todos no instante em que nascemos. Em suma, nos protegemos de quem realmente somos ao confundirmo-nos com o tributo que devemos pagar ao coletivo; perdemo-nos de nós mesmos num regozijo paradisíaco ao acreditarmos ser unicamente aquilo que o mundo espera que sejamos. Pois é este paraíso que devemos sacrificar a fim de nos encontrarmos com nós mesmos em nossa dolorosa ambiguidade; é como abrir os braços à dor que nos sustenta, mas da qual fugimos assustados sempre que espreita - a dor de ser. Embora experimentemos este sacrifício como autoimolação, fundamentalmente não se trata de negar a si próprio, mas de negar a sedução paradisíaca de ser inteiramente definido pelo mundo. Eis o paradoxo: ao oferecermo-nos em sacrifício, damos vida a quem somos.

Sobre a angústia: alteridade e o nascer da imagem - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A angústia é algo que impede o nascimento de uma imagem que tenta vir à luz. Como se a imagem ficasse turva e imperceptível por uma mancha; que cresce na medida em que a imagem se aproxima. Surge quando uma imagem quer se formar mas não consegue; e quando ela finalmente se forma, a angústia desaparece. Tomar consciência da imagem oculta sob a angústia, portanto, envolve permitir seu nascimento, sentir o afeto que carrega, estar com ela e lidar com a responsabilidade ética que ela traz consigo. Permitir o nascimento da imagem depende da aceitação da angústia; de abrir mão da vontade de afastar o mal-estar, assumindo uma postura passiva e receptiva. É preciso abandonar as armas. O eu que aceita torna-se então a terra fértil que pode receber a semente imagética e, o estar com ela é o mesmo que permitir que cresça até se transformar em uma nova atitude que leve em conta o outro rejeitado. Partindo da rejeição, passa pelo suportar, pelo tolerar, até que finalmente nasça uma atitude fraterna. Da ética da exclusão para uma ética da fraternidade imagética. Nesse caminho, transforma-se não somente a imagem e seu afeto, mas também o eu se fortalece através do ganho de flexibilidade. Ampliar a consciência não se refere somente a jogar luz na escuridão, isto é somente uma consequência; o fundamental é uma mudança de atitude diante da imagem, em que sejamos mais capazes de estar abertos ao outro. É isso o que a angústia tenta operar, uma abertura do eu em relação ao inconsciente e à vida. Não se trata de ser capaz de aceitar tudo, muito menos de cumprir com a expectativa do outro, mas é como aceitar o próprio destino.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Dor da alma e psicoterapia - Roberto Gambini

Texto retirado do livro: A voz e o tempo de Roberto Gambini.

Queria ainda acrescentar que a alma doída adquire uma força, uma radicalidade surpreendente em sua maneira de se expressar e de entender as coisas. É como se, por sofrer, a alma se tornasse ainda mais ousada e mais corajosa nos comentários que tem a fazer sobre este mundo, suas desgraças, verdades e belezas. A dor a torna mais eloquente, mais penetrante, mais surpreendente, e esse seu modo de assim falar, podemos reconhecer em escritores, artistas, pensadores, inovadores de todos os tipos. Não é uma eloquência retórica, não é um uso das palavras ou das emoções usadas para discutir argumentos usuais, mas é como que uma subversão da maneira de se considerar coisas costumeiras.  Parece que a alma, ferida, ao mesmo tempo fica forte naquilo que declara; é como se com isso ganhasse não uma legitimidade, mas espaço, acesso para abordar temas que não costumam ser abordados. Então esse é um dos efeitos desse mistério que procuro formular – e por isso justifica que uma terapia dê valor à dor. Porque poderia ser dito: isso é um viés depressivo da terapia, ou um gostar da dor. O que estou dizendo é exatamente o oposto. É essa dificílima relação com a própria dor ou com a alheia promove inovações. E como venho repetindo, a mim interessam as inovações do conhecimento e do discurso da alma – distinto daquele proferido pelo intelecto e pela razão.

A razão e o intelecto podem ancorar a expressão da alma; mas a origem dessa expressão está nela mesma, e não nos primeiros. Essa força penetrante advém do fato de que só a alma que habitou o Hades consegue lançar luz sobre as obscuridades que a luz da razão não ilumina. Sua luz é outra. É como se a alma que sofreu adquirisse o poder de se iluminar a si mesma, para se revelar. O que ela faz é apenas revelar-se; o resto é com a gente. Quer dizer: a alma somos nós. Mas quando se revela, é o nosso ego, é a nossa consciência, é o nosso humano, demasiadamente humano que tem a tarefa de fazer alguma coisa com o que foi revelado, ou a revelação se perde. A revelação é dada, ela é um dom. Pois ouso dizer que a origem do dom é a dor.

Há uma ideia muito antiga, expressa no mito de Quiron, o Curador Ferido, de que a possibilidade de curar advém da experiência de conhecer a dor. No entanto aqui não estou me referindo especialmente à capacidade de curar, mas àquilo que é produzido pela alma doída: ela produz algo, não se estiola, não fica lamentando eternamente. Algo ocorre na alma ferida. Ela expressa algo, ela passa a iluminar algo. Complemento então: a terapia é uma escuta, não exatamente da fala do paciente, mas do processo transformador da alma doída, do que esta passará a dizer. É preciso um ouvido muito atento para isso, para não se confundirem essas expressões da alma com as oriundas do ego. Elas não são a mesma coisa, e há que se ter um ouvido que ouça essa melodia anímica, porque na verdade são essas manifestações que vão revelar qual é o processo da pessoa na dimensão anímica, objeto este a ser reconhecido e mais estudado. O mais fundo que consigo tocar neste momento é que o trabalho terapêutico tem que ouvir essa matéria fugidia, sem no entanto dirigir o andamento dos passos: são apenas duas pessoas falando, ouvindo e aprendendo a prestar atenção no som das asas batendo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O arquétipo do inválido e a clínica psicológica - Guggenbühl-Craig

Texto retirado do livro "Eros de muletas" de Adolf Guggenbühl-Craig

De acordo com a fantasia contemporânea de saúde, devemos nos tornar completos sendo a totalidade entendida no sentido de perfeição: "Seja perfeito..." O defeito mais insignificante, a menor disfunção deve ser curada, removida ou erradicada. Apesar de ter existido um tempo em que um temperamento melancólico era aceito, e até idealizado, hoje melancólicos são diagnosticados como "depressivos", são tranquilizados e medicados a ponto de se tornarem vegetais maravilhosamente contentes. No fundo todos somos conscientes de nossas falhas, nossas fraquezas, nossa invalidez. Ao mesmo tempo reprimimos essa compreensão de todas as maneiras possíveis. Lutamos interminavelmente, insensatamente para manter a ilusão de totalidade ao tentar alcançar a saúde perfeita.

Nossa cegueira quanto ao lugar e a importância do arquétipo do inválido torna-se uma atitude moralista, tendo como deuses máximos a saúde e a totalidade. Não é difícil imaginar o quão devastadora esta atitude é quando se trata daqueles que sofrem de neuroses e desordens psicossomáticas. Sou constantemente surpreendido por um tom de superioridade moral que desliza nas vozes dos psicoterapeutas quando discutem casos desta natureza. Neuróticos e psicossomáticos simplesmente são inferiores; eles não podem ser curados porque eles não o querem ser. Eles não querem mudar; eles não querem crescer. Eles recusam nossos esforços para sua melhora. Eles nem sequer escutam seus sonhos! Como afogados, eles agarram-se a suas resistências, defendendo-se, como vemos, tenazmente contra o terapeuta que está apenas tentando ajudá-los. Tais pessoas, tais pobres e ignorantes almas, merecem apenas nossa atenção quando abraçam nossa fantasia de crescimento/saúde/totalidade (é uma fantasia ou uma fixação ilusória?). Como terapeutas, apenas nos interessamos por eles quando eles querem ser curados.


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O trauma e as defesas arquetípicas da alma - Donald Kalsched


Texto retirado do livro "O mundo interior do trauma" de Donald Kalsched

O que os sonhos revelam e o que pesquisas clínicas recentes demonstram é que, quando o trauma atinge a psique em desenvolvimento de uma criança, tem lugar uma fragmentação da consciência na qual as diferentes "partes" (Jung as chamava de psiques fragmentadas ou complexas) se organizam de acordo com certos padrões arcaicos e típicos (arquetípicos), mais comumente díades ou sizígias formadas por "seres" personificados. Tipicamente, uma das partes do ego regressa ao período infantil, e outra parte progride, isto é, cresce rápido demais e se torna precocemente adaptada ao mundo exterior, com frequência como um "falso eu" (Winnicott). A parte da personalidade que progrediu cuida, então, da parte que regrediu. Essa estrutura dual foi independentemente descoberta por clínicos de muitas convicções teóricas diferentes, fato que indiretamente respalda a sua base arquetípica. [...]

Nos sonhos, a parte da personalidade que regrediu é geralmente representada como um eu-criança ou um eu-animal vulnerável, jovem e inocente (não raro feminino) que permanece vergonhosamente oculto. Seja qual for a sua encarnação particular, esse "inocente" remanescente do eu total parece representar um núcleo do espírito pessoal imperecível da pessoa - o que os antigos egípcios chamavam da "alma-Ba", ou a Alquimia, o espírito alado vitalizante do processo de transformação, isto é, Hermes/Mercúrio. Esse espírito sempre foi um mistério, uma essência da individualidade que nunca é totalmente compreendida. É a essência imperecível da personalidade - a que Winnicott se referia como o "Verdadeiro Eu" e que Jung, buscando um conceito que reverenciaria as suas origens transpessoais, chamou de Self. A violação desse núcleo interior da personalidade é inconcebível. Quando outras defesas falham, as defesas arquetípicas não medirão esforços para proteger o Self - chegando mesmo ao ponto de matar a personalidade que abriga esse espírito pessoal (suicídio).

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Tornar-se criança novamente - C. G. Jung

Texto de C. G Jung publicado em "Psicologia e alquimia"

O caminho principia no país das crianças [alusão a análise de uma série de sonhos], isto é, no tempo em que a consciência racional do presente ainda não se separara da alma histórica, do inconsciente coletivo. Esta separação, na verdade, é indispensável, mas conduz a um tal distanciamento da psique pré-histórica nebulosa, que ocorre uma perda do instinto. Isto acarreta uma atrofia da vida instintiva e consequentemente uma desorientação nas situações humanas em geral. A separação mencionada faz com que o "país das crianças" permaneça definitivamente infantil, tornando-se uma fonte perpétua de tendências e impulsos infantis. É evidente que esses intrusos não são bem-vindos pela consciência, que se esforça por reprimi-los. Tal repressão serve apenas para estabelecer um distanciamento maior da origem, agravando a falta de vida instintiva a ponto de tornar-se uma ausência de alma. Como resultado disso, a consciência é interditada pelo infantilismo ou então vê-se obrigada a defender-se constantemente e em vão deste último através de uma senilidade cínica ou mediante uma resignação amarga. É preciso reconhecer, portanto, que apesar do inegável sucesso da atitude racional da consciência hodierna, sob muitos aspectos ela é infantilmente inadequada e, portanto, hostil à vida. Esta, tendo sido dessecada e bloqueada, exige que se busque a fonte. Mas a fonte só será encontrada se a consciência resignar-se a retornar ao "país das crianças" a fim de nele receber, como antes, as diretivas do inconsciente. É infantil não apenas aquele que permanece criança por muito tempo, mas aquele que separando-se da infância pensa que ela não existe mais porque não a vê. Entretanto, quem retorna ao "país das crianças"receia tornar-se infantil, pois não sabe que tudo o que é autenticamente anímico tem uma dupla face: uma voltada para a frente, outra para trás. Ela é ambígua e, portanto, simbólica como toda realidade viva. 

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A psicoterapia - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

O mergulho no inconsciente não depende de uma postura introspectiva voluntária, como se tivéssemos que nadar para o fundo do mar contra a força do ar em nossos pulmões que insiste em nos levar para a superfície. Ao contrário, o mergulho é mais como se houvesse uma grande pedra amarrada em nossos pés que nos puxa para o fundo apesar de nossos esforços para nos mantermos na superfície. É um processo involuntário que não pode ser interrompido, nem pela mais obstinada força de vontade. A força da pedra que nos puxa para o fundo é infinitamente maior do que a força dos braços do melhor dos nadadores. O inconsciente nos atrai com seu fascínio através das projeções. Faz com que nos movamos no mundo sem nos darmos conta da verdadeira finalidade de "nossas" escolhas. O fato é que muitas das escolhas que pensamos ser nossas, são na verdade de um sem número de outros eus que coabitam nossa totalidade. O eu entretanto tenta tomar posse de tudo que chega à superfície da consciência, e assim acredita que tal ideia é minha, tal escolha é minha, tão percepção é minha, tal forma de ver as coisas é minha, tal estado de espírito é meu, tal emoção é minha, tal desejo é meu, etc. quando muitas vezes são manifestações imediatas da autonomia do inconsciente, nos seduzindo para uma finalidade que nos transcende. Se não desenvolvermos uma atitude religiosa em relação a nosso próprio processo, somos vitimados por um destino coletivo e muitas vezes trágico. Jung define a atitude religiosa através de uma análise etimológica um pouco incomum do termo religio. Comumente considera-se religio como derivado de religare (religar) e entende-se que religião refere-se à religação do homem com Deus. Mas para Jung, religio é derivado de religere (examinar cuidadosamente, examinar de novo, refletir bem), portanto, quando fala em atitude religiosa está falando de uma postura atenta e cuidadosa frente ao próprio processo. A ideia de cultivar a alma, de James Hillman, é uma imagem mais poética que se refere exatamente à mesma coisa. A postura adequada frente ao processo deve ser cuidadosa, atenta e paciente como se estivéssemos cultivando um jardim. As flores nascem a seu próprio tempo e por elas mesmas se o cultivarmos adequadamente. É justamente a atitude religiosa, neste sentido, ou o cultivo da alma, que pode nos salvar do afogamento no fundo do mar durante o mergulho no inconsciente. Assim sendo, estar atento de forma cuidadosa ao processo significa conhecer as imagens da alma. Aqui sim a postura introspectiva voluntária se torna importante; não como forma de mergulhar no inconsciente já que neste caso somos simplesmente tragados, mas como forma de encontrarmos um modo de voltar à superfície através do que encontrarmos no fundo do mar.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O Arquétipo do Pai para C. G. Jung - Bernardo Souza


Texto de Bernardo Souza
Email para contato: bernardo_souza@msn.com

Na construção da obra de Jung, percebemos a constante presença dos aspectos masculinos e femininos da psique. Além dos conceitos de anima e animus, o autor apresenta uma série de interpretações embasadas na mitologia, como o hierós gamos (casamento sagrado) e a sizígia (motivo da conjunção). Também merecem destaque os estudos dos manuscritos alquímicos, a partir dos quais Jung problematiza a coniunctio (conjunção dos opostos) que, em diversas de suas representações, caracterizam o masculino e o feminino como as imagens de Sol e Lua, Rei e Rainha, para citar alguns exemplos.

O feminino, em sua essência, representa algo de primordial, estando ligado ao estado inconsciente. Portanto, o feminino e o inconsciente são anteriores e dão origem à consciência. Comumente, o masculino é associado ao estado de consciência, estando contido no inconsciente, ao mesmo tempo em que se opõe a ele. Assim como o feminino fica vinculado ao inconsciente e o masculino ao consciente, também ficam o materno e o paterno, que são respectivamente referidos a estas duas instâncias. O poder da inconsciência feminina/materna e seus mistérios provocaram medo nos homens que não os compreendiam. Por isso, ocorre uma reação, em que cabe ao pai organizar em alguma medida a inconsciência materna.

sábado, 17 de janeiro de 2015

O confronto com a sombra - C. G. Jung

 Texto retirado do livro "Psicologia e alquimia" de C. G. Jung

O confronto com a metade obscura da personalidade, com a "sombra", produz-se por si só em toda terapia mais ou menos profunda. Este problema é tão importante quanto o do pecado na Igreja. O conflito aberto é inevitável e doloroso. Já me perguntaram muitas vezes: "Como o senhor lida com isso?" - Eu não faço nada, não posso fazer absolutamente nada. Só posso esperar, com uma certa confiança em Deus, até que o conflito suportado com paciência e coragem produza a solução destinada a essa pessoa, e que eu mesmo não posso prever. No entanto, não permaneço passivo ou inativo, mas ajudo o paciente a compreender tudo o que o inconsciente produz durante o conflito. Acreditem, não se trata de banalidades. Pelo contrário, trata-se das coisas mais significativas com as quais já deparei. O paciente também não permanece inativo, pois deve fazer o que é certo, de acordo com suas forças, a fim de não permitir que a pressão do mal se torne excessiva nele. Assim, necessita da "justificação pelas obras", pois a "justificação pela fé" por si só ainda não ecoou dentro dele, como em tantos outros seres humanos. A "fé" pode substituir às vezes a falta de experiência. Neste caso a ação real se torna indispensável. Cristo acolheu o pecador e não o condenou. A verdadeira imitação de Cristo fará o mesmo, também devemos acolher o pecador que nós mesmos somos. E assim como não acusamos o Cristo de confraternizar com o mal, também não devemos inculpar devido ao amor que sentimos pelo pecador que nós mesmos somos, como se isto representasse um pacto de amizade com o diabo. Melhoramos o outro através do amor e o pioramos através do ódio, o que vale também para nós mesmos. O perigo deste modo de ver equivale ao perigo da imitação de Cristo; o justo, porém, não permite que o surpreendam conversando com publicanos ou prostitutas. Devo no entanto ressaltar que a psicologia não inventou o cristianismo, nem a imitação de Cristo. Desejo que a Igreja liberte a todos do peso de seus pecados, mas a quem ela não puder prestar esse serviço só resta o recurso de curvar-se tanto na imitação de Cristo, a ponto de tomar sobre si a carga da própria cruz.