domingo, 23 de novembro de 2014

Posicionamento do sistema Conselhos de Psicologia para a questão da Psicologia, Religião e Espiritualidade

POSICIONAMENTO DO SISTEMA CONSELHOS DE PSICOLOGIA PARA A QUESTÃO DA PSICOLOGIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE

(GT NACIONAL – PSICOLOGIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE)

I. No momento histórico vivido pelo país, a Psicologia brasileira – ciência e profissão - vem a público apresentar seu posicionamento frente a uma das temáticas mais relevantes para a manutenção das instituições democráticas que garantem o estado de direito, conforme prevê o Artigo 5º da Constituição Federal: a laicidade do Estado e a liberdade religiosa.

II. A laicidade do Estado deve ser entendida como princípio pétreo, jamais pode ser colocada em questão, pois é sob essa base, segura e inquestionável, que se assenta a igualdade de direitos aos diversos segmentos da população brasileira, cuja extraordinária diversidade cultural e religiosa, uma das maiores do planeta, constitui um formidável potencial para resolução de inúmeros problemas da sociedade contemporânea.

III. O Estado Brasileiro, entretanto, não nasceu laico. Durante séculos o país viveu sob a égide de uma religião, o que determinou a interferência do dogma religioso na política do Estado. Durante esse período ocorreram perseguições religiosas e muitas arbitrariedades foram cometidas. Com a República o país tornou-se oficialmente laico e, com a Constituição de 1988, esse fato foi reafirmado de forma representativa pela população brasileira, conquistando total legitimidade. Portanto, entendemos ser legítimo afirmar que a laicidade do Estado configura-se como um princípio pétreo, inquestionável, que expressa o anseio da população brasileira.

IV. Afirmar que o Estado é laico não implica alegar que o povo deva ser desprovido de espiritualidade e da prática religiosa. No Brasil, como se sabe, o povo experimenta forte sentimento de religiosidade, expresso por meio de múltiplas formas de adesão religiosa, dadas as suas raízes indígenas, europeias e africanas, a cujas determinações culturais e religiosas se associaram outras, advindas do continente asiático. São exatamente os princípios constitucionalmente assegurados que permitiram a ampliação das denominações religiosas, hoje presentes na cultura nacional, e também concederam aos cidadãos brasileiros o direito de declararem-se não adeptos de qualquer religião. Afirma-se, portanto, e, antes de tudo, o “direito à liberdade de consciência e de crença”.

sábado, 22 de novembro de 2014

Histórias de vida ou Vida de narrativas - Milson Santos

Texto de Milson Santos
Contato: mds1000@ig.com.br

Algumas construções Pós Junguianas subvertem a compreensão da história de vida na formação dos Sintomas para uma leitura Arquetípica da personalidade. Relativiza-se, portanto, a pesquisa do passado para se compreender o hoje e aposta-se nos Deuses para compreender a Psique. Vale lembrar que Jung, por exemplo, optava por consagrar a infância e as relações parentais a devida importância. Há diferença teórica e prática entre o "método Hillmaniano" e o "método dialético em Jung".

Em minha clínica observo que as influências familiares da infância tendem a marcar a Psique com alto impacto. Nesse sentido sou mais "Junguiano" que "Hillmaniano". Ponho em cheque o aforisma: não importa tanto o que fizeram com você. Claro que importa!!! Não se trata de vitimizar o Analisando, trata-se de ir onde o Sintoma nos convoca: para alguns o mergulho na infância oferece a possibilidade de transformação, para outros: fuga histérica. Cada caso é um caso, a arte da Análise consiste em ir onde o Sintoma nos convoca e não onde a teoria manda.

Jung deu o devido valor a Freud, é um erro crasso opor a proposta Junguiana a Freudiana. Aliás, em muitas obras, Jung alude ao método Freudiano como o mais indicado para muitos casos. Claro que no decorrer de sua extensa obra, Jung vai se afastando do modelo Freudiano, contudo, vejo pontos de contato importante entre as teorias. 

Uma boa Anamnese é reveladora. As vezes falta um tanto de objetividade aos teóricos das ficções do Inconsciente. Anotações literais podem oferecer rico material para a compreensão do Sintoma. Será que a recusa a quaisquer modelos que "beirem" a medicina clássica não revela uma tola vaidade e esconde uma fantasia de inflação profissional? Será que o apego aos Arquétipos não pode ser mera defesa erudita para evitar lidar com o Aqui-e-agora? Estamos lidando com a Psique ou priorizando status Psíquicos? 

Assevera o dito popular: Nem tanto céu, nem tanto terra . Nem tanto Arquétipo nem tanto passado.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O Numinoso - Rudolf Otto


Texto retirado do livro "O Sagrado" de Rudolf Otto

Este será, então, nosso intento no tocante à peculiar categoria do sagrado. Detectar e reconhecer algo como sendo "sagrado" é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso. Embora também tanja outras áreas, por exemplo, a ética, não é daí que provém a categoria do sagrado. Ela apresenta um elemento ou "momento" bem específico, que foge ao acesso racional no sentido acima utilizado, sendo algo árreton ["impronunciável], um ineffabile ["indizível"] na medida em que foge totalmente à apreensão conceitual.

1. Essa afirmação seria liminarmente falsa se o sagrado tivesse o sentido utilizado em certo linguajar filosófico e geralmente também no teológico. Acontece que nos habituamos a usar "sagrado" num sentido totalmente derivado, que não é o original. Geralmente o entendemos como atributo absolutamente moral, como perfeitamente bom. Kant, por exemplo, chama de vontade santa a vontade impelida pelo dever e que, sem titubear, obedece à lei moral. Só que isso seria simplesmente a vontade moral perfeita. Nesse sentido também se fala de dever "sagrado" ou da "santa" lei, mesmo quando o que se quer dizer não é nada mais do que sua necessidade prática, seu caráter normativo geral. Só que esse uso do termo heilig [sagrado ou santo] não é rigoroso. Embora o termo abranja tudo isso, nossa sensação a seu respeito subentende claramente algo mais, que precisamos especificar agora. Na verdade, o termo heilig e seus equivalentes linguísticos semítico, latino, grego e em outras línguas antigas inicialmente designava apenas esse algo mais, não implicando de forma alguma o aspecto moral, pelo menos não num primeiro momento e nunca de modo exclusivo. Como para nós hoje santidade sempre tem também a conotação moral, será conveniente, ao tratarmos aquele componente especial e peculiar, inventar um termo específico para o mesmo, pelo menos para uso provisório em nossa investigação, termo esse que então designará o sagrado descontado do seu aspecto moral e - acrescentamos logo - descontado, sobretudo, do seu aspecto racional. 

domingo, 16 de novembro de 2014

Psicose e psicologia analítica: de C. G. Jung à Nise da Silveira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A esquizofrenia, anteriormente denominada dementia praecox, teve importância fundamental para que Jung desenvolvesse a psicologia analítica. De acordo com Walter Boechat (2009), “toda teoria psicológica é formulada a partir de um alicerce psicopatológico” (p. 30) e “a esquizofrenia vem a ser a psicopatologia que proporciona o fundamento teórico para a psicologia analítica” (p.31). Os principais conceitos formulados por Jung foram desenvolvidos através de suas observações com pacientes esquizofrênicos. Neste artigo vamos abordar a importância da psicose para o desenvolvimento da psicologia analítica assim como o entendimento teórico que Jung formulou sobre a psicose até chegarmos nas intervenções terapêuticas pioneiras desenvolvidas pela Dra. Nise da Silveira.

No inicio de sua carreira como psiquiatra, Jung trabalhou no Hospital Burghölzli na Suíça, ao lado do renomado Eugen Bleuler. Foram as idéias desenvolvidas por Bleuler, nesta época, que possibilitaram a substituição do conceito de dementia praecox pelo conceito de esquizofrenia. Segundo Boechat (op. cit), o trabalho desenvolvido por Jung no Hospital Burghölzli foi fundamental para que chegasse à ideia da presença de mitologemas (núcleos temáticos universais), através da observação dos delírios e alucinações de seus pacientes. Esses mitologemas apontariam para uma provável origem comum para os, atualmente denominados, sintomas positivos da esquizofrenia. Isso possibilitou que Jung formulasse a hipótese do inconsciente coletivo. O próprio Jung (2007. OC 5) em um de seus livros de grande importância histórica, por ser considerado o marco de sua ruptura com Freud, intitulado atualmente como “Símbolos da transformação”, descreve a alucinação de um de seus pacientes: “O doente vê no sol um membro ereto. Quando balança a cabeça para um e outro lado, o pênis solar também oscila numa e noutra direção, e daí se origina o vento” (p. 89. §151). Tal descrição aparentou não possuir nenhum sentido mais profundo para o jovem psiquiatra naquele momento. Anos mais tarde, quando um texto referente às visões da liturgia de Mitra foi traduzido do grego, Jung observou que a alucinação desse paciente era extraordinariamente semelhante ao que estava descrito no antigo texto. Esse fato foi especialmente importante para que formulasse o conceito de arquétipos, definindo-os como uma “predisposição funcional para produzir idéias iguais ou semelhantes” (p. 91. §154). O paciente que relatou tal alucinação não conhecia o idioma grego e na ocasião em que a relatou, o texto ainda não havia sido traduzido. Esse fato excluía a possível hipótese de que o paciente tinha conhecimento prévio sobre o texto e, quando relatou sua alucinação estava apenas descrevendo algo que já conhecia ou que se trataria de um caso de criptomnésia. Embora esse caso tenha tido importância especial para Jung, foi somente após uma série de outras observações de ocorrências de mitologemas em mitos, contos de fada, sonhos, delírios e fantasias, que Jung chegou a formulação da teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos.

Boechat (op. cit) comenta que Jung, assim como Bleuler, não se contentava com o ponto de vista psiquiátrico, dominante em sua época, que lidava com os sintomas psicóticos apenas sob uma perspectiva descritiva e diagnóstica. Ao invés disso, procurava “sempre o conteúdo simbólico das esquizofrenias” (p. 31). Esse posicionamento possibilitou que Jung fosse além dos preceitos psiquiátricos de sua época (que permanecem atuais) e formulasse uma teoria que não concebia os delírios e alucinações como desprovidos de significação. Para Jung, os sintomas psicóticos manifestam-se de forma totalmente irracional, de impossível compreensão a não ser que se parta de um pressuposto simbólico. Isso significa que exprimem um sentido mais profundo, embora impossível de ser apreendido pela consciência de forma imediata, o que os tornam aparentemente sem sentido.

sábado, 15 de novembro de 2014

Mortos vivos: imaginação, sonho e psicologia junguiana - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Os mortos vivos são habitantes do imaginário humano pelo menos desde a Mesopotâmia, a primeira civilização da humanidade. Tabuletas de argila encontradas entre o Tigre e o Eufrates (rios no território do atual Iraque) falavam de rituais para apaziguar as “almas” dos antepassados, que negligenciados após a morte (sem os ritos apropriados), seriam responsáveis por uma série de moléstias, incluindo aquelas que hoje consideramos psicológicas. Ao longo do tempo, outros ritos fúnebres foram criados levando em conta a possibilidade dos mortos retornarem à vida, como os sepultamentos em caixões de madeira lacrados, por exemplo. Mortos vivos habitaram também o imaginário da Europa medieval. Diversas foram as formas que assumiram, desde mortos que levantavam de seus túmulos até as Sucumbos, demônios femininos que seduziam as pessoas em seus sonhos para roubar-lhes energia vital. As Sucumbos talvez tenham sido o protótipo do vampiro contemporâneo, que ao invés de sêmen, sugam sangue como fonte de energia vital, mas que ainda são associados à sexualidade. O Drácula de Bram Stoker foi um clássico do fim do século XIX que alcançou em cheio a alma do mundo ocidental, tendo se tornado referência para os vampiros que seriam criados desde então, até os dias de hoje. 

O fato é que os mortos vivos são personagens do imaginário humano pelo menos desde os primórdios da civilização. Independente da cultura, do tempo e da religião, havia o morto vivo habitante do mundo imaginal, em uma série de formas diferentes e muitas vezes relacionados a alguma forma de maldição familiar. No cenário contemporâneo, filmes, séries de televisão, animações e livros sobre zumbis e vampiros fazem muito sucesso, isto é, continuam nos fascinando. O Drácula ganhou inúmeras versões na literatura e no cinema. Os zumbis, criaturas que se levantam da morte com um apetite insaciável pela carne dos vivos, também capturaram o imaginário contemporâneo. Talvez o mais importante filme sobre essas criaturas tenha sido “A noite dos mortos vivos” (Night of the living dead) de 1968, e desde então o interesse sobre os mortos que se levantam do túmulo só parece aumentar. O sucesso da série de televisão “The walking dead” mostra que os mortos vivos continuam ocupando lugar de honra em nosso imaginário até os dias de hoje, pelo menos desde a origem da civilização e possivelmente bem antes disso.

Assim como ocorre com qualquer imagem arquetípica que “habita” o mundo imaginal, os mortos vivos são continuamente reatualizados através da imaginação criativa, das estórias de horror e de nossos sonhos. É inclusive bastante comum que o mitologema do morto que retorna à vida para sugar a energia vital ressurja nos sonhos contemporâneos, fato esse que reforça a tese de sua importância significativa para a alma. Há aparições oníricas que reúnem os elementos presentes na literatura e no cinema contemporâneos e outras formas menos reconhecíveis, mas sempre arrumam alguma forma imagética para afirmarem que existem de fato. Segue um sonho (publicado com autorização) de um jovem de vinte e cinco anos que ilustra uma aparição de mortos vivos:


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O aborto como imagem arquetípica e a clínica junguiana - Roberto Gambini

Texto retirado do artigo Não nascer: alguns traços da imagem arquetípica do aborto de Roberto Gambini; publicado originalmente na Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, nº3. 1985.

[...] não está escrito no livro do destino que tudo o que germina nascerá. No reino da psique não há garantias, só possibilidades. O que começa poderá nascer ou não, independente de nossa vontade - a não ser que de fato apliquemos um abortivo, porque assim quisemos. Um grão cai na areia e seca; outro brota sobre espinhos que o engolem; um terceiro cai na terra e cresce. O exagerado valor que consagramos à idéia de achievement e produtividade nos fazem encarar a vida "certa" como uma desenfreada arrancada para o sucesso. Criar, produzir, frutificar, disseminar, expandir - no fundo, uma fantasia de poder e de plenitude material para compensar o tremendo vácuo espiritual de nossa era. Desse perspectiva, não criar é o maior dos infortúnios; abortar, no corpo ou na psique, o maior sinal de derrota. "Crescei e multiplicai-vos", fora de seu contexto simbólico e religioso, transformou-se num chavão de multiplicação anárquica e desregulada, da superprodução inflacionária, da superpopulação da Terra. Não é à toa que a doença de nossa época é o câncer, a multiplicação letal.

Há um tempo de nascer e um tempo de esperar. Num tudo que reluz é ouro, e nem tudo que se inicia precisa ir até o fim só porque foi iniciado. A natureza cria e destrói, faz e desfaz, inicia e interrompe e seus desígnios estão além de nosso alcance. Não há porque ser sentimental: nem todo aborto é uma tragédia. Do mesmo modo, nem tudo o que fracassa em elevar-se à percepção consciente precisa ser visto como perda inestimável. Quando natural, o aborto compensa a cupidez do ego que acredita tudo poder controlar e possuir, e o que se gostaria que nascesse não nasce. Nosso útero não prende. Nosso solo não vitaliza. Há algo que não vai. Não é hora. Não é o caso. Não estamos em sintonia com a fonte elementar. Não adianta insistir. Não somos nós que controlamos as portas de entrada e saída desta vida. 

Mas isso não basta. Às vezes algo novo deve imperiosamente nascer e somos nós mesmos o agente abortífero. Aí o caso é outro. Porque aquilo que não nasce, quando o momento era chegado, torna-se destrutivo e passa a corroer por dentro. Mas o que é isso, o que é esse momento crucial?

No plano psíquico, que é o que nos interessa aqui, um nascimento se refere sempre à integração de um conteúdo inconsciente pela consciência, que em consequência se amplia. Esse conteúdo tenta emergir uma, duas vezes e aborta. A consciência não consegue abrir lugar para ele, suas malhas estão muito apertadas. Pode ocorrer que um sonho indique que isso ocorreu, e a pessoa, se estiver em análise, ficará desesperada, ou perguntará - "mas o que devo fazer?" e nada adianta. Não adianta o analisando assumir uma atitude de pseudo-transformação, fabricando gestos e ideologias com a intenção de convencer a si mesmo e aos demais que livrou-se desse ou daquele problema. Na verdade, nada genuíno nasceu. O que aconteceu foi um aborto, ou vários, e o que fazer? Deve o analista sentir-se fracassado e o analisando perder a esperança? O processo instintivo e natural deve ser respeitado e compreendido mesmo quando leva a um aborto desse tipo. O desenvolvimento da psique não é uma corrida de Fórmula I ou uma pesca milagrosa em que todos levam um prêmio. É uma pesca, sim, mas paciente, humilde, religiosa. Como diziam os velhos alquimistas, é uma obra que dará um fruto Deo concedente, se Deus quiser. Mas há um momento em que esse peixe, esse conteúdo até então desconhecido do inconsciente que subir à tona e está dotado de toda a energia necessária para tanto, suficiente trabalho já foi feito e no entanto a consciência se recusa a recebê-lo. Esse aborto custa caro, porque pode ser que a chance não se apresente pela segunda vez. É preciso portanto saber julgar e diferenciar. Nem tudo precisa nascer; mas quando chega o momento do Advento reclamado pela alma, é melhor ter pronta a manjedoura. 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Tarô: Senda da Individuação - Paulo Urban

Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição especial nº 337-A, outubro/2000
Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
É autor do livro “O que é Tarô”, da coleção Primeiros Passos, ed. Brasiliense.

Observação do autor do Blog: É raro encontrar alguém em quem sinto confiança quando o assunto diz respeito a Tarô. Paulo Urban, sem dúvida nenhuma, é uma dessas poucas pessoas.


Não é por acaso que os 22 Arcanos Maiores do Tarô acham-se numerados. Suas cartas, perfiladas tal qual os capítulos de uma novela, retratam uma história verdadeira, a do ser humano em sua senda iniciática, repleta de experiências transcendentes e desafios que se nos apresentam como oportunidades para o autoconhecimento.

Desde a Antigüidade, espalhados por distintas culturas, incontáveis são os mitos que abordam a imagem do homem colocado à prova, chamado a enfrentar perigos e resolver enigmas, a ultrapassar seus próprios limites e escolher o rumo certo nas encruzilhadas do caminho.

Foi o médico psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961), inicialmente admirador de Freud, e que desenvolveu sua própria teoria para a compreensão do psiquismo, a psicologia analítica, quem cunhou o nome de “individuação” para esse processo ininterrupto de aprimoramento pessoal, destinado a orientar a personalidade para algo maior e transcendente, a cumprir psicologicamente o mesmo papel a que se destinavam os rituais de iniciação dos povos antigos.

A questão fulcral da psicologia junguiana esbarra num dos principais mistérios da existência, o da consciência em busca da fonte primordial, inconsciente em sua essência, de onde se desprendeu originalmente. Para Jung, o ego poderia ser comparado ao inconsciente na mesma proporção que uma ilha estaria para o oceano à sua volta. Outra analogia seria a do planeta Terra, pequenina morada da civilização humana (a consciência), comparado ao Universo desconhecido, no qual estamos inseridos (o inconsciente).

Jung chamou de ego o núcleo da consciência, sendo a individuação toda a busca empreendida por esta diminuta instância em direção ao presumido centro da totalidade psíquica, a abranger obviamente o mundo inconsciente. Ao ponto de fusão entre consciência e inconsciente, núcleo da personalidade total e ao mesmo tempo passagem para uma dimensão transcendente e coletiva, espécie de porta para o psiquismo universal, Jung denominou de Selbst, em inglês self, que em português melhor ainda se traduz por “si mesmo”.


sábado, 1 de novembro de 2014

A questão da interpretação das imagens na psicologia junguiana - Luís Paulo B. Lopes


Texto de Luís Paulo B. Lopes

As imagens têm importância central para a psicologia junguiana, seriam elas a linguagem que a alma se utiliza para falar de si própria. Jung dá grande importância aos mitos, contos de fada, sonhos e fantasias, por considerar que estas imagens trazem consigo elementos arquetípicos que constituem os fundamentos da alma. James Hillman também nos fala da importância da utilização de imagens metafóricas para pensarmos a alma, pois segundo afirma, os conceitos psicológicos tendem, devido à própria natureza unilateral da linguagem conceitual, a literalizar teorias e engessar nosso entendimento sobre nós mesmos. Jung sempre salientou este risco quando repetidas vezes alertou para a tendência a hipostasiarmos teorias, isto é, a confundirmos nossos conceitos sobre a alma com a alma em si mesma. Para Hillman, é a linguagem metafórica que nos previne de confundir o mapa com o território, pois a ambiguidade implícita da metáfora impede a unilateralidade conceitual e a consequente literalização. 

Hillman considera a metáfora como a coniunctio falada, isto é, engloba os opostos em uma unidade paradoxal. Este pensamento está de acordo com o que pensava Jung quando afirmava que o símbolo é a união dos opostos, isto é, irremediavelmente ambíguo, e que a postura simbólica é o que permite a abertura do indivíduo ao mistério no trato com a imagem. Ao contrário da postura simbólica, a postura semiótica, segundo Jung seria responsável por definir correspondências estáticas entre imagens e significados definidos, algo extremamente semelhante ao problema da literalização proposto por Hillman. O cuidado em discernir postura simbólica de postura semiótica, por Jung, nos adverte de que mesmo quando utilizamos uma linguagem imagética, não estamos necessariamente trabalhando de maneira simbólica. E que nossa postura diante das imagens é de fundamental importância para que mantenhamos a ambiguidade do símbolo viva, e assim a possibilidade de abertura para o desconhecido. 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Saci Pererê nas regiões do Brasil do Século XIX - João Barbosa Rodrigues

Em homenagem ao dia do Saci (31 de outubro) trago esta obra prima de João Barbosa Rodrigues contando sobre o Saci do século XIX de Norte à Sul do país. O autor descreve as diferenças  regionais desta personagem mítica tão presente no imaginário nacional. Este texto constitui joia raríssima para o estudo da alma brasileira.

Texto retirado do livro Poranduba amazonense de João Barbosa Rodrigues. Este livro foi publicado em 1890. Nesta época, as regras ortográficas da língua portuguesa eram diferentes das atuais. Tomei a liberdade de corrigir palavras do texto original para o português contemporâneo. Além disso, acrescentei entre colchetes, significados de algumas palavras pouco utilizadas na atualidade, que são restritas à regiões específicas do país ou que estão no idioma Tupi. 


O civilizado, que muitas vezes não entende a pronúncia do sertanejo, que é o mais perseguido por ele [pelo Saci] em suas viagens, tem-lhe alterado o nome; já o fez Çacy-pererê. Saperê, Sererê, Sareré, Siriri, Matim-taperê, e até já lhe deu um nome português, o de Matinta-Pereira, que mais tarde talvez, terá o sobrenome da Silva ou da Matta.

Para conseguir seus fins, e fazer suas proezas, sem ser visto, quase sempre vive o Çacy [Saci] ou Maty metamorfoseado em pássaro, que se denuncia pelo canto, cujas notas melancólicas, ora graves ora agudas, iludem o caminhante que não pode assim descobrir-lhe o pouso, porque, quando procura vê-lo pelas notas graves, que parecem indicar-lhe estar o Çacy [Saci] perto, ouve as agudas, que o fazem já longe. E assim iludido pelo canto se perde, leva descaminho nunca vendo o animal.

Quando no Norte, os tapuyos, ouvem o canto de Maty-taperê, e no Sul, os roceiros ou os Kaipiras, o do Kaapora ou do Çacy-taperê; que o civilizado toma por Alma de caboclo, os velhos o esconjuram [lhe rogam pragas]; as crianças unidas conchegam-se ao colo das mães; estas, arrepiadas, olham para os pais, que tremem, mas não negam o fumo que espalham pelas cercas dos quintaes e pelas portas para que o Çacy [Saci] se cale, e se retire, levando com que matar o vício de cachimbar.

Quando não se apresenta aos viandantes sob a forma de pássaro, reveste-se da forma humana, e só (no Sul) ou acompanhado de sua mãe (Pará e Maranhão) percorre as ruas, entra pelos roçados, vai às casas de farinha; penetra nas senzalas; aterroriza os passageiros; rouba a mandioca; furta farinha e quebra os bejus no forno, proezas em que é destro no Rio de Janeiro.

No Amazonas e Pará é um kurumi [curumim] de uma perna só, de cabelos vermelhos, os quais a civilização transformou em barrete [tipo de chapéu] vermelho (Pará) sempre acompanhado de uma velha tapuya [índios que não falam o idioma Tupi. Em Tupi significa "inimigo", "forasteiro"] ou preta (tatámanha [mãe de fogo em Tupi]) vestida em andrajos que pela calada da noite, e mesmo de dia assovia dizendo: Maty-taperê!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A psicologia junguiana e o resgate da alma brasileira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A alma brasileira não pode ser adequadamente circunscrita de forma exclusiva pela mitologia grega e pelo mito judaico-cristão. Somos um povo miscigenado, com fortes influências da cultura africana e indígena. Nossa cultura foi formada, literalmente pelo choque entre essas culturas. Apesar de nossa riqueza étnica e cultural, a história de dominação da cultura europeia tendeu a excluir nossas influências africanas e indígenas do debate acadêmico. Historicamente, os mitos, ritos e costumes destas culturas foram estudados por nossos etnólogos e antropólogos como culturas exóticas, mas somente raramente como constituintes fundamentais de nossa cultura, sempre presentes no aqui e agora. A psicologia junguiana no nacional tendeu, ao longo dos poucos anos em que floresceu no Brasil, a reproduzir as mesmas temáticas abordadas pelo pensamento europeu. Do ponto de vista arquetípico, as produções acadêmicas nacionais tendem a utilizar majoritariamente a mitologia grega e o mito judaico-cristão em suas amplificações. Não quero dizer que estes mitos não exerçam grande importância em nossa constituição cultural e psíquica, mas por outro lado é importante assumir que abordar cultura tão rica e complexa como a brasileira a partir desta perspectiva unilateral significa ignorar ampla parcela de nossa cultura; é ignorar ampla parcela de nossa alma. 

Somente recentemente a psicologia junguiana brasileira parece ter se ocupado de forma séria com a constituição complexa de nossa cultura, levando em conta as diversas influências étnicas e culturais que nos constituem enquanto brasileiros. Um exemplo do esforço nacional pelo resgate da alma brasileira foi materializado no primeiro volume da coleção “alma brasileira” publicado em 2014 pelas editoras Mauad X e Bapera. Esta coleção foi idealizada e planejada, segundo Oliveira (2014), a partir do “Colóquio: Psicomitologia Junguiana e Mitos Brasileiros” em novembro de 2011. O objetivo da coleção é introduzir de forma definitiva os mitos constituintes de nossa cultura, ainda vivos no imaginário brasileiro, no estudo de nossa alma sob a perspectiva da psicologia junguiana. Leonardo Boff em seu prefácio para o primeiro volume desta coleção, nos fala sobre a importância desta empreitada. Afirma ele que “diversa é a composição étnica, diferentes são as regiões geográficas do país e vigora um rico sincretismo em curso que, seguramente, vai moldar toda a cultura brasileira futura. É o que faz o Brasil complexo e desafiador” (BOFF in OLIVEIRA, p. 7, 2014). Este desafio a que se refere é fundamental para a compreensão e o resgate de nossa identidade cultural, que há séculos sofre de um abafamento dominador da cultura europeia e tende a desqualificar e excluir a África e a América pré-colombiana de sua reflexão sobre si própria. Resgatar nossas raízes enquanto cultura, isto é, aqueles nossos aspectos que foram negligenciados, equivale a reconstruir nosso futuro; reconstruir nossa identidade cultural. Ainda segundo Boff, “uma nação revela já maturidade quando começa a pensar a si mesma com um olhar próprio, mesmo quando se serve de um arsenal teórico vindo de fora mas filtrado pela nossa singularidade como povo” (Ibid: 7). Me parece que não só a psicologia junguiana brasileira, mas nossa sociedade de forma mais ampla, começa a atingir tal grau de maturidade que permite pensar sobre si mesma a partir da própria singularidade enquanto povo. Faz-se necessário que a psicologia analítica, sem negligenciar suas raízes europeias, comece também a valorizar a totalidade da cultura brasileira a fim de se aproximar de um entendimento mais original e radical sobre a alma brasileira; e consequentemente ajude na construção de uma identidade cultural fundamentada em suas próprias raízes, em sua totalidade.