quarta-feira, 5 de maio de 2010

Os Três Senhores do Ego - Chögyam Trungpa


Uma metáfora interessante usada no Budismo Tibetano para descrever o funcionamento do ego é a dos "Três Senhores do Materialismo": o "Senhor da Forma", o "Senhor da Palavra" e o "Senhor da Mente". Na apreciação que se segue dos Três Senhores , as palavras "materialismo e "neurótico" referem-se à acção do ego.

O Senhor da Forma refere-se à procura neurótica de conforto físico, segurança e prazer. A tecnológica e altamente organizada sociedade em que vivemos reflecte a nossa preocupação em manipular o que fisicamente nos rodeia, de modo a proteger-nos contra as irritações dos brutais, inconstantes e imprevisíveis aspectos da vida. Elevadores automáticos, carne pré-embalada, ar condicionado, autoclismos, funerais privados, contas poupança-reforma, produção em massa, satélites meteorológicos, retroescavadoras, luz fluorescente, empregos das-nove-às-seis, televisão - tudo tentativas para criar um mundo manobrável, seguro, previsível e agradável.

O Senhor da Forma não designa as situações de vida, fisicamente ricas e seguras, que criamos per se. Refere-se mais à preocupação neurótica que nos leva a criá-las, a tentar controlar a natureza. É ambição do ego sentir-se alegre e seguro, tentando evitar qualquer fonte de irritação. Por isso, agarramo-nos aos nossos prazeres e pertences, tememos a mudança ou forçamo-la, tentamos criar um recreio ou um abrigo.


O Senhor da Palavra refere-se ao uso do intelecto em relação ao nosso mundo. Adoptamos conjuntos de categorias que depois usamos como utensílios, como modos de lidar com os fenómenos. Os produtos mais desenvolvidos desta tendência são as ideologias, os sistemas de ideias que racionalizam, justificam e glorificam as nossas vidas. Nacionalismo, comunismo, existencialismo, Cristianismo, Budismo - todos nos fornecem identidades, regras de conduta e interpretações de como e porquê as coisas acontecem e são o que são.


Também aqui, o uso do intelecto em si mesmo não é o Senhor da Palavra. O Senhor da Palavra refere-se à tendência da parte do ego para interpretar tudo o que seja irritante ou ameaçador de um modo que permita neutralizar a ameaça ou transformá-la em algo "positivo" do ponto de vista do ego. O Senhor da Palavra refere-se ao uso de conceitos como filtros que nos protegem da percepção directa das coisas. Levamos os conceitos demasiado a sério; usamo-los como ferramentas que solidificam o nosso mundo e nós mesmos. Se existe um mundo de coisas nomeáveis, então "Eu" como uma das coisas nomeáveis também existe. Não deixamos qualquer espaço para dúvidas perturbadoras, incertezas ou confusões.

O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência para se manter ciente de si mesma. O Senhor da Mente governa quando disciplinas psicológicas e espirituais são usadas como meio de manter a auto-consciência, de conservar o sentimento de si. Drogas, yoga, oração, meditação, transes, várias psicoterapias - tudo pode ser usado desse modo.

O ego é capaz de converter tudo em seu proveito, mesmo a espiritualidade. Por exemplo, se soubermos de alguma técnica de meditação ou prática espiritual particularmente benéfica, a atitude do ego é, em primeiro lugar, olhá-la como um objecto de fascínio e, depois, examiná-la. Uma vez que o ego tem uma aparência sólida e não pode absorver nada, só pode imitar, ele tenta examinar e reproduzir essa prática de meditação e esse modo de vida meditativo. Conhecidos todos os truques e respostas do jogo espiritual, tentamos automaticamente imitar a espiritualidade, já que o envolvimento real exigiria a completa eliminação do ego, o que, na verdade, é a última coisa que desejamos. Todavia, não se consegue experienciar aquilo que se tenta imitar; apenas se pode encontrar alguma área dentro das fronteiras do ego que pareça ser a mesma coisa. O ego traduz tudo em termos do seu bem-estar, das suas qualidades intrínsecas, e sente um grande contentamento e exaltação por ter sido capaz de criar tal modelo. Finalmente, conseguiu criar algo de tangível, uma confirmação da sua própria individualidade.

Quando se consegue manter a auto-consciência dentro das práticas espirituais, o genuíno desenvolvimento do espírito é altamente improvável. Os nossos hábitos mentais tornam-se tão fortes quanto difíceis de penetrar. Podemos até chegar ao ponto de alcançar o estado totalmente diabólico de completa "Egoidade".

Embora o Senhor da Mente seja o mais eficaz em subverter a espiritualidade, também os outros dois Senhores podem comandar a prática espiritual. Retiros na natureza, isolamento, simplicidade, silêncio - tudo isto pode servir para nos protegermos da irritação e ser um modo do Senhor da Forma se manifestar. Ou talvez mesmo a religião nos proporcione um pretexto para criarmos um abrigo seguro, um lar simples mas confortável, para arranjarmos um parceiro amável e um emprego cómodo e estável.

O Senhor da Palavra também está, do mesmo modo, envolvido na prática espiritual. Muitas vezes, ao seguirmos uma via espiritual, substituímos as nossas antigas crenças por uma nova ideologia religiosa, mas continuamos a usá-la da mesma forma neurótica. Por mais sublimes que sejam as nossas ideias, se as levamos demasiado a sério e as usamos para manter o nosso ego, continuamos a ser governados pelo Senhor da Palavra.

Se examinarmos os nossos actos, a maioria de nós provavelmente admitirá que somos governados por um ou mais dos Três Senhores. "Mas", podemos perguntar, "e depois? Isto é uma simples descrição da condição humana. Sim, sabemos que a nossa tecnologia não nos pode proteger da guerra, crime, doença, insegurança económica, trabalho árduo, velhice e morte; nem as nossas ideologias nos defendem da dúvida, incerteza, confusão e desorientação; nem as nossas terapias nos protegem da dissolução de estados de consciência elevados que temporariamente alcancemos e da desilusão e angústia que se lhe seguem. Mas o que podemos nós fazer? Os Três Senhores parecem demasiado poderosos para serem derrubados e, se o fossem, não saberíamos com que os substituir."

O Buda, perturbado com estas questões, examinou o processo pelo qual os Três Senhores governam. Questionou por que razão as nossas mentes os seguem e se poderia haver outro caminho. E descobriu que os Três Senhores seduzem-nos criando um mito fundamental: o de que somos seres sólidos. Mas, afinal, o mito é falso, um grande embuste, uma gigantesca fraude, e é a raiz do nosso sofrimento. Para chegar a esta descoberta, ele teve de abrir caminho através das elaboradas defesas erguidas pelos Três Senhores para evitarem que os seus súbditos descobrissem a burla que é a fonte do seu poder. Não há outro modo de nos libertarmos do domínio dos Três Senhores, a não ser desmontar, camada após camada, as suas defesas.

As defesas dos Senhores são criadas a partir de material das nossas mentes. Este material é usado por eles de modo a manter o mito básico da estabilidade. Para vermos por nós mesmos como este processo funciona, temos de examinar a nossa própria experiência. "Mas como", podemos perguntar, "devemos fazer esse exame? Que método ou ferramenta vamos usar?" O método que o Buda descobriu é a meditação. Ele descobriu que lutar para encontrar respostas não funciona. Só quando havia hiatos na sua luta é que a percepção clara lhe aparecia. Ele começou a compreender que havia, no seu âmago, uma qualidade pura e desperta que se manifestava por si mesma apenas na ausência de esforço. Por isso, a prática da meditação implica "abandono".

Chögyam Trungpa, Cutting Through Spiritual Materialism,
Shambala Publications, 2002 (trad. de Moksha)

fonte: http://shangri-la-spirit.blogspot.com/2010/02/os-tres-senhores-do-ego.html

Um comentário:

Jammysson Nogueira disse...

Muito bom! depois da uma olhada, www.jornadasdamente.blogspot.com