sábado, 10 de janeiro de 2015

O trabalho de Kuan Yin no inferno e o paradoxo do Self - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Sobre sonhos e transformações" de C. G. Jung

E, no caso do si-mesmo, perguntamo-nos da mesma forma. [Quais valores ele tem?] Então descobrimos que sua extensão para cima é a mesma que para baixo - e isso é um tanto mais sinistro, pois através do si-mesmo entra em nós não apenas o Bem, mas também o Mal. Se um ser humano fosse assim diríamos: "Mas ele se contradiz constantemente, é totalmente confuso!" Agora, neste momento, parece estar lá em cima e no próximo lá embaixo, não dá para entender isso. Como é difícil para as pessoas entenderem que a imagem de Deus é ambivalente. [...]

As culturas asiáticas conseguem compreender isso, conseguem compreender que os deuses se manifestam de modo benevolente e malevolente. Por exemplo, a adorável Kuan Yin. Ao entregar o alimento diário aos espíritos maus do inferno, ela se manifesta na forma de um espírito mal, pois é tão boa que quer evitar assustar os maus espíritos. Imaginem os senhores a Mãe Maria alimentando os maus espíritos no inferno, usando para tal uma pele de animal com um rabo. [Risos] É bem assim, não é?

O si-mesmo é de fato semelhante àquelas xilogravuras japonesas que vi: Embaixo está o inferno e lá Kuan Yin vaga na forma de um terrível fantasma, isto é, que tem um aspecto diabólico. Vaga na forma de um diabo que alimenta, por assim dizer, os maus espíritos. E de sua cabeça sai um fio que vai até as alturas do céu e lá Kuan Yin, muito pequena, está sentada em seu trono na luz prateada da lua, na forma de uma remota recordação. Na realidade agora ela é o demônio malvado. 

[...] através da psicologia do inconsciente sabemos que o si-mesmo é absolutamente opositivo. E de uma forma que simplesmente nos aturde. Percebemos então: Isso é demais para a minha cabeça; e eventualmente podemos ter um sonho muito importante que nos transmite uma verdade absolutamente paradoxal em relação à qual não conseguimos descobrir de forma alguma; Isso se refere a algo diabólico ou à mais alta espiritualidade ou a algo nesse sentido...? É antinômico, e por isso a imagem de Deus é transcendente, pois se furta ao nosso alcance. 

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O afeto do analista - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Sobre sonhos e transformações" de C. G. Jung

Um dia tratei de um caso, era uma médica mais velha, tinha mais ou menos 56 anos e ela me procurou num estado de total Amentia [amência], quer dizer, num estado mental confuso. Então eu disse: "Pelo amor de Deus, o que a senhora fez, o que está acontecendo com a senhora?" Assim veio à tona que ela esteve em uma análise freudiana, onde tinha que ficar deitada no divã, e o analista sentou atrás dela na esperança de não ser atingindo, e simplesmente não reagia. Desse modo, ela começou a fantasiar todo tipo de coisas, tentava chocá-lo, aborrecê-lo, provocar - pelo amor de Deus - qualquer tipo de reação nesse pedaço de pau; e não vinha nenhuma resposta, de modo que ela parecia cada vez mais louca. Por fim, precisou interromper a análise, pois sentia que estava entrando em um estado mental completamente confuso. Mas isch härrgottnochemal [Deus do céu!] - é desumano comportar-se assim! E então ela diz: "Veja, o senhor teve um afeto!" E eu digo: "Claro que tive um afeto. O que a senhora imagina, a senhora acha que sou um pedaço de pau? Não sou, pois, um ser triste e atrofiado de tanta teoria que mal tem reações humanas". Quando tenho um afeto, tenho um afeto! E ocasionalmente também provei isso para as pessoas - de fato - que tenho um afeto! [Risos] Não quero lhes contar o que já aprontei nesse sentido. Mas dessa forma encurtamos uma análise por anos! 

[...] é óbvio que ela vai perder toda orientação se o analista não reage ou quando não diz o que pensa a respeito da situação. Quando alguém vem com um plano maluco onde vemos que isso tudo [...] consiste numa trama para destruí-lo e não dizemos nada, isso é desumano, não é? Pois, por outro lado, ensinamos ao paciente no caso de suas imaginações ativas: Você deve entrar nessas fantasias e não ficar à parte como se fosse um pedaço de pau, e sim participar. E daí o analista não participa, comporta-se exatamente do modo como diz ao paciente que a gente não deve se comportar. E de fato - isso é totalmente estúpido, isso simplesmente revela que o analista não consegue ser natural e, se não consegue ser natural, é melhor ele desistir de antemão.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Sobre a projeção - C. G. Jung

 Texto retirado do livro "Sobre sentimentos e a sombra" de C. G. Jung

Uma projeção significa, por exemplo, que projeto características em alguém ou então encontro características que nem estão lá, que vêm de algum outro lugar, por exemplo, de mim mesmo. [...]

Passamos por uma renovação pessoal somente quando nos assumimos. Entretanto, pessoas que têm como hábito projetar desejam sempre responsabilizar as outras pessoas, como se os outros fossem responsáveis pelas asneiras que cometemos. Por exemplo, alguém acha que a esposa deve tratá-lo de forma diferente, pois ele mesmo se trata de modo estúpido. Assim a esposa deveria fazer a coisa certa! E assim por diante. [...] 

[...] todas as projeções atuam tais como projéteis, projéteis psíquicos. Quando alguém é projetado em nós, é como se fôssemos alcançados por um disparo. O deus é comparável a algo que nos penetra. Um homem, por exemplo, pode ser totalmente desvirtuado por projeções femininas sem saber o que está acontecendo com ele. Uma flecha feminina o atingiu. E o contrário também acontece. Por isso é tão importante sabermos o que nos pertence e o que não nos pertence. Se a senhora em questão com as suas fantasias de Sêmele tivesse a bondade de refletir se de fato é Sêmele, a amante de Zeus e a mãe de um deus [Dioniso], ela rapidamente cairia em si. Mas jamais se pensa sobre isso, apenas se atua, deixa-se acontecer. E é justamente este o perigo. Desse modo naturalmente se formam neuroses, é fácil imaginarmos isso. Imaginem um homem que para sua mulher representa quase um Zeus ou então colega de Zeus ou alguém que está sob suspeita de fazer temporais [...]. Deus do céu, alguém assim em pouco tempo torna-se alvo de mania de grandeza. Caso não reflita sobre, ficará apenas com o efeito disso - de que as pessoas diante dele reagem como se ele fosse o "anticristo" em pessoa. Isso de fato gera um efeito. Isso o modifica. Por isso há muitos homens - com suas respectivas esposas - que através do casamento tornam-se alvos de uma modificação psíquica, em função desses arquétipos que a esposa traz consigo. Et vice versa! [...]. Preciso enfatizar isso sempre de novo. Não é apenas um sexo, e sim, também o outro. Isso envenena a nossa sociedade e as nossas relações pessoais em alto grau, pois é simplesmente algo inadequado. Não se adéqua a nós. Por isso preciso saber quem sou quando desejo me libertar dessas coisas.  Quer dizer, preciso saber que isso não me pertence e que sofro de manias. Possivelmente torno-me alvo de uma dessas mania quando alguém a lança contra mim, me atinge secretamente pelas costas. Através de expectativas desse tipo podemos corromper alguém, precisamente filhos. A mãe, por exemplo, pode corromper o seu filho por completo quando tem expectativas errôneas em relação a ele. Pode "desvirtuá-lo" e isso também pode ser feito com um adulto. Por isso, a análise das projeções é importante. 

Como médico naturalmente não pude me dar o luxo de encenar mitologia grega com os meus pacientes. No lugar disso precisava ficar atento para perceber o que estava sendo projetado. Nesse intuito não poderia também projetar. Quando temos uma profissão dessas, uma profissão como eu a tive, naturalmente projetam toda espécie de coisas em cima de nós. Então somos o salvador e sei lá mais o quê. É de lascar! Por fim ficamos fartos disso. Mas quando não sabemos nada a respeito disso, os efeitos são desastrosos! É regra o fato de os pais, quer seja o pai ou a mãe, desejarem de seus filhos justamente aquilo que eles próprios não fazem. Transferem para eles aquela vida que eles próprios não viveram. É algo inexorável. É uma equação matemática. Vemos muito claramente o efeito que isso gera nos filhos. 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Tormento da oscilação na eternidade - O Sátiro

Fazendo esforço para memorizar a receita que o Sátiro acabara de lhe dizer, Pedro ficou um tempo em silêncio, para tentar absorver cada palavra que ouviu. O Sátrio lentamente se aproximou. Caminhava tão silenciosamente que não era possível ouvir nem ao menos o barulho das folhas em que pisava. O estranho ser com chifres levantou o dedo e tocou levemente a testa do jovem. Subitamente Pedro sentiu-se tonto, o chão em seus pés começou a girar tão rápido que a floresta virou um borrão em seu campo visual. Sentiu-se como se estivesse no centro de um furacão. Mas ali no centro permanecia imóvel. Gradualmente o chão deixou de girar. Pedro sentiu-se velho e assumiu uma postura encurvada. Olhou para as próprias mãos e percebeu que estavam muito enrugadas. A floresta havia desaparecido e percebeu que estava em sua casa. Havia poeira e teia de aranha em todos os cantos. Tudo estava sujo e bagunçado. O jovem, que agora estava velho, pensou em arrumar toda aquela bagunça, mas sentiu uma preguiça tão forte que parecia penetrar-lhe em cada músculo de seu corpo. Ficou ali onde estava, incapaz de dar um passo à frente. Seu estomago roncou em um estrondo, e percebeu que estava faminto. Dali de onde estava podia ver alguns vegetais sobre a mesa da cozinha, mas tudo que conseguiu fazer foi sentar-se, sem forças, na cadeira de balanço que estava logo atrás de si. Estranhamente a cadeira começou a balançar sozinha, e mesmo com as tentativas de Pedro em parar seu movimento, continuava balançando ininterruptamente para frente e para trás. Sempre que a cadeira ia para frente, sentia-se encorajado a levantar para preparar algo que matasse sua fome; mas sempre que a cadeira ia pra traz sentia como se uma força sobrenatural tivesse roubado toda sua energia e ficava impossibilitado de se levantar. Subitamente, Pedro percebeu que havia um homem com roupas e chapéu quadriculados, como um tabuleiro de xadrez, no canto da sala o observando. De seu chapéu pendiam três pontas com um guizo em cada extremidade. Era uma espécie de bobo, que não parava de rir observando Pedro oscilando, sem alternativa, para frente e para traz na cadeira de balanço. Pedro sabia que conhecia aquele homem de algum lugar, mas não era capaz de se lembrar de onde. Sua risada eufórica dava a impressão de que era um lunático, e suas roupas não ajudavam a dar a entender o contrário. Mas ele parecia ser a menor de suas preocupações, pois sua fome era profunda e suas forças haviam deixado seu corpo. Pedro, o jovem velho, perdeu as contas de quantas vezes a cadeira balançou para frente a pra trás. Algumas centenas, ou talvez milhares. Permaneceu ali, alternando desesperado entre a vontade de se levantar e a constatação amarga de que não tinha forças para tal. O tempo passou. Primeiro dias, depois anos, quem sabe décadas. Não era mais capaz de dizer. Pedro estava tão magro que ninguém que o conhecesse seria capaz de reconhecê-lo. Sua pele parecia estar aderida a seus ossos, como se não houvesse músculo algum entre eles. Seu tormento não tinha fim. O lunático com roupa de bobo permaneceu durante todo esse tempo no canto da sala, observando e rindo como louco de Pedro, que tinha a estranha sensação de que ele deveria estar por trás daquele tormento sem fim. Quando o tempo se transformou em eternidade, desejou morrer para que seu tormento pudesse acabar. Mas estranhamente, apesar de não comer durante toda a eternidade e estando tão fraco que mal podia se mexer, o sopro de vida não o deixava definitivamente. Em certo momento Pedro se perguntou se o motivo de não morrer, apesar disso tudo, seria pelo fato de já estar morto. Foi exatamente no momento em que Pedro se questionou sobre isso, que o louco com roupas xadrez interrompeu sua risada perpétua. 

Famintos insaciáveis - O Sátiro


 – Não é prudente pisar nas sombras de seus amigos. Esteja sempre atento à posição do sol no céu para que cuidadosamente desvie das sombras deles que são projetadas no chão. Só pise na sombra de algum deles, se gentilmente te convidarem para se aproximar. E ainda assim, pise cuidadosamente somente com o pé direito. Se for feito corretamente, isso pode funcionar como o fogo de um forno que cozinha um peixe saboroso para ambos comerem. Esse é um alimento que nutre! Mas, embora você tome todo cuidado para não pisar na sombra deles, não poderá evitar que eles eventualmente pisem na sua. E quando isso acontecer esteja atento! Pois terá a chance de se sentar mais perto do fogo deste forno e suas mãos poderão alcançar o peixe que está sendo assado. Isso acontecerá muitas vezes em sua vida, mas se não estiver atento e perder essas oportunidades, pode ficar tão distante do fogo a ponto de congelar de frio; e o peixe que poderia matar sua fome estará tão distante que não sentirá nem o cheiro. Muitas pessoas estão mortas de fome apesar de estarem tão gordas quanto hipopótamos! Comem somente coisas cruas, sem gosto ou nutrientes. Engordam, é verdade, mas morrem de fome e permanecem perambulando famintos, comendo qualquer porcaria, mas sem nunca se sentirem saciados. Imagino que não queira ser como esses coitados que morrem de fome e vivem mortos em busca de algum alimento que os saciem, comendo de tudo mas sem nunca encontrar algo que realmente mate suas fomes. Há muitos desses por aí, e para se tornar um deles basta estar desatento. Estar atento para aquilo que o nutre verdadeiramente é o segredo pra não cair na desgraça que eles caíram. Mas há as miragens conforme já lhe disse. Estar cuidadosamente atento, com o foco naquilo que é significativo te mostrará o caminho da vida viva.

sábado, 27 de dezembro de 2014

O pai devorador - Murray Stein


Texto de Murray Stein. 
Obs: Não tenho certeza sobre a fonte, por isso este texto está sem referência bibliográfica.

A mãe devoradora tornou-se uma realidade arquetípica bastante conhecida no mundo da psicologia profunda. Jung descreve a personalidade devorada pela mãe em seu aspecto neurótico (CW 9,11 § § 20-22); suas formas extremas aparecem como psicoses endógenas, a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva. Já o arquétipo do pai devorador não é tão familiar. Nesse caso, poderíamos dizer que sua forma extrema seria uma psicose social.

Se o arquétipo paterno tem como um polo o pai guardião de seus filhos e poderosa fortaleza contra as ameaças do mundo exterior, tem como outro o pai devorador, na sua rígida insistência quanto a formas convencionais de pensamento, de sentimento e comportamento. O reflexo fenomenológico desse lado negativo do arquétipo do pai é uma consciência vinculada e submersa em convenções e hábitos, e um respeito ao dever definido pelas normas coletivas prevalecentes. Um dilúvio gástrico de valores, padrões de pensamento, gostos, disposições, atitudes e opiniões da cultura predominante dissolve qualquer traço de experiência individual e de reação espontânea.

A história “A Morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoi, constitui um retrato magistral de uma consciência devorada pelo pai. Tolstoi apresenta Ivan como :

"filho de um oficial cuja carreira em Petersburgo, através de vários ministérios e departamentos, foi do tipo que conduz um homem a posições de que, devido ao seu longo tempo de serviço e ao cargo oficial a que chegou, não pode ser dispensado, embora seja óbvio que não sirva para executar nenhum serviço útil, e para quem, em conseqüência, são especialmente criados postos que, embora fictícios, fazem jus a salários nada fictícios, de seis a dez mil rublos, nos quais permanece até a idade avançada". 

(Leon Tolstoi, The Cossacks, Penguin Classics, 1960, pág. 110 ). 

Na história, não se faz menção à mãe de Ivan. Seu pai é claramente uma representação do Senex na forma do velho rei que deveria morrer mas continua a reinar obstinadamente. 

Religiosidade como expressão do inconsciente - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Carta de Jung enviada a Piero Cogo em 21/09/1955.

Prezado senhor Cogo,

O senhor não pode imaginar, com base numa reportagem de jornal, o que significa quando eu digo que se pode saber sobre Deus, sem precisar fazer o esforço, muitas vezes bastante infrutífero, para crer. [Jung faz alusão a uma entrevista que havia concedido a uma revista italiana onde dizia que "não precisava crer em Deus, mas sabia de sua existência]. Como o senhor sabe sou psicólogo e me ocupo principalmente com a pesquisa do inconsciente. Neste capítulo entra também, entre outras coisas, a questão religiosa. Se quiser entender-me corretamente, deverá conhecer primeiramente os resultados de minha psicologia. Não posso relatá-los numa carta. Sem um conhecimento profundo da psique humana, estas observações, tiradas do contexto, são totalmente incompreensíveis. Não se pode esperar dos jornalistas que eles se preocupem com os funamentos do nosso pensar. 

Do ponto de vista psicológico, a religião é um fenômeno psíquico que existe de modo irracional, assim como o fato de nossa fisiologia ou anatomia.  Se faltar esta função, a pessoa humana, como indivíduo, estará sem equilíbrio, pois a experiência religiosa é expressão da existência e funcionamento do inconsciente. Não é verdade que possamos ter êxito só com a razão e a vontade. Ao contrário, estamos sempre sob o efeito de forças perturbadoras, que atravessam a razão e a vontade, isto é, são mais fortes do que as últimas duas. Por isso, pessoas altamente racionais, e precisamente estas, sofrem de perturbações que não conseguem administrar com a vontade ou a razão. Desde tempos imemoriais, as pessoas designavam como divino ou demoníaco aquilo que sentiram ou experimentaram como sendo mais forte do que elas. Deus é o mais forte delas. Esta definição psicológica de Deus nada tem a ver com a definição dogmático-cristã, mas descreve a experiência de um Outro, muitas vezes numinoso opositor, que coincide de forma impressionante com a "experiência histórica de Deus". Conheci um professor de filosofia que acreditava poder viver bem só com a razão. Mas "Deus" lhe impôs uma fobia de carcinoma, que ele não conseguia superar e que transformou sua vida num tormento. A desgraça foi que ele não soube ser simples o suficiente para admitir que a fobia era mais forte do que sua razão. Tivesse sido capaz de admitir isso, teria encontrado um caminho para submeter-se racionalmente ao mais forte. Mas, em sua soberba, não entendeu o caminho de sua superstição racionalista, o perigo que o ameaçava e o sentido inerente a esta ameaça. A atuação do divino é sempre uma espécie de dominação, não importa a forma que assuma. Nossa razão é um presente maravilhoso ou uma conquista nada desprezível, mas ela só cobre um aspecto da realidade, que também consiste de dados irracionais. As leis da natureza não são axiomáticas, mas apenas probabilidades estatísticas. Mas a realidade, bem como nossa psique, consiste sobretudo de dados irracionais. Por isso é impossível uma mecanização da vida psíquica. Como os primitivos, também nós estamos entregues a um mundo escuro e às suas imprevisíveis possibilidades. Por isso precisamos da religião, ou seja, de cuidadosa atenção aos acontecimentos (religio é derivada de religere, e não de religare) e não de sofismas, supervalorização do intelecto racional [religere = considerar cuidadosamente, examinar de novo, refletir bem; religare = amarrar de novo, religar]. [...]

Com elevada consideração,
(C.G. Jung)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O inconsciente coletivo - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta de Jung enviada ao Pastor Max Frischknecht em 08/02/1946.

Prezado Pastor, 

[...] Li com interesse e prazer seu estudo cuidadoso sobre as visões aterradoras do beato Bruder Klaus e agradeço de coração. Concordo plenamente com seus comentários até o ponto em que levanta a questão sobre o fundamento transcendental da visão. Sua alternativa é "Deus metafísico" ou "o próprio inconsciente" do Bruder Klaus. Este é o caput draconis [cabeça do dragão]! Inadvertida e sub-repticiamente o senhor me imputa uma teoria que venho combatendo há dezenas de anos, isto é, a teoria de Freud. Como se sabe, Freud deriva a "ilusão" religiosa do "próprio" inconsciente do indivíduo, portanto do inconsciente pessoal. Há razões empíricas que contradizem este ponto de vista. Eu as reuni na hipótese do chamado inconsciente coletivo. O inconsciente pessoal caracteriza-se pelo fato de que seus conteúdos são formados pessoalmente e são ao mesmo tempo aquisições individuais que variam de pessoa para pessoa, tendo cada qual o seu "próprio" inconsciente. O inconsciente coletivo, porém, apresenta conteúdos que são formados pessoalmente apenas em grau ínfimo e, no essencial, em grau nenhum; não são aquisições individuais, mas são essencialmente os mesmos em toda parte e não variam de pessoa para pessoa. Este inconsciente é como o ar que é sempre o mesmo em toda parte, que é respirado por todos e a ninguém pertence. Os conteúdos (chamados arquetípicos) são condições prévias ou esquemas da constituição psíquica geral. Eles têm um esse in potentia [ser em potência] e in actu [no ato], mas não in re [como coisa], pois como res [coisas] já não são o que eram, mas tornaram-se conteúdos psíquicos. São em si imperceptíveis, não representáveis (pois antecedem toda representação), em toda parte e "eternamente" os mesmos. Por isso só existe um inconsciente coletivo que é idêntico a si mesmo em toda parte, do qual todo o psíquico recebe sua forma antes de ser personalizado, modificado, assimilado, etc. por influências externas.

Para tornar mais compreensível este conceito um tanto difícil, gostaria de trazer um paralelo da mineralogia, isto é, a chamada estrutura do cristal. Esta estrutura representa o sistema axial do cristal. Na solução-mãe ela é invisível, como se não existisse, mas ela existe, agregando-se primeiramente os íons ao redor dos pontos axiais (ideais) de intersecção e, depois, as moléculas. Há somente uma estrutura do cristal para milhões de cristais da mesma composição química. Nenhum cristal individual pode falar de sua estrutura, pois ela é a única e a mesma precondição de todos (e nenhum deles a realiza perfeitamente!). Ela é a mesma em toda parte e "eternamente".

domingo, 21 de dezembro de 2014

Relatividade do livre arbítrio - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Cartas de Jung enviada ao Reverendo S.C.V. Bownam em 10/12/1953.

Dear Sir,

O seu problema do liberum arbitrium [livre arbítrio] tem obviamente vários aspectos, que eu não saberia como abordar nos limites de uma carta. Só posso dizer que, até onde a consciência chega, a vontade é entendida como sendo livre, isto é, que o sentimento de liberdade acompanha nossas decisões, não importando se elas são realmente livres ou não. Esta última questão não pode ser decidida empiricamente. Onde a pessoa não está consciente aí obviamente não pode haver liberdade. Através da análise do inconsciente amplia-se o horizonte da consciência a cresce automaticamente o grau de liberdade. Uma consciência plena significaria uma liberdade e responsabilidade igualmente plenas. Se os conteúdos inconscientes que se aproximam da esfera da consciência não foram analisados e integrados, então a esfera da liberdade fica diminuída pelo fato de tais conteúdos serem ativados e ganharem mais influência compulsiva sobre a consciência do que se fossem totalmente inconscientes. Não creio que haja maiores dificuldades nesta linha de abordagem. Parece-me que a verdadeira dificuldade começa com o problema de como lidar com os conteúdos integrados, que antes eram inconscientes. Isto, porém, não pode ser tratado numa carta.

Esperando vê-lo na primavera, sou
Yours sincerely,
(C.G. Jung)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Regressão e fascinação arquetípica na neurose e na psicose - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol II.
Trecho de carta de Jung enviada ao Dr. John W. Perry em 08/02/1954.

Dear Perry, 

[...] Em primeiro lugar, a regressão que ocorre no processo de renascimento ou integração é em si um fenômeno normal, podendo ser observado também em pessoas que não sofrem de nenhuma psicopatia. No caso de uma constituição esquizóide, observa-se quase o mesmo, apenas com a diferença de que há uma tendência marcante do paciente ficar preso ao material arquetípico. Neste caso, repete-se sempre de novo o processo de renascimento. Esta é a razão por que a esquizofrenia clássica desenvolve condições estereotipadas. Até certo ponto, a experiência é a mesma com indivíduos neuróticos. Isto é assim porque o material arquetípico tem uma estranha influência fascinante que tenta assimilar a pessoa por inteiro. Ela procura identificar-se com alguma das imagens arquetípicas que são características do processo do renascimento. É por isso que os casos esquizofrênicos apresentam um comportamento de certo modo bem infantil. Pode-se observar quase o mesmo em pacientes neuróticos; desenvolvem inflações por conta da identificação com imagens arquetípicas ou desenvolvem um comportamento infantil por conta da identidade com a criança divina. Em todos estes casos a dificuldade real será libertar os pacientes da fascinação (através do material arquetípico). Os casos esquizóides bem como os casos neuróticos repetem muitas vezes sua história pessoal da infância. Isto é um sinal favorável na medida em que é uma tentativa de voltar a crescer no mundo, como eles já o fizeram antes, ou seja, em sua infância. (...)


Via de regra não é preciso levar os pacientes a que revivam suas reminiscências infantis; geralmente eles o fazem por si mesmos, pois é um mecanismo inevitável e, como eu disse, uma tentativa teleológica de crescer novamente. Se observar apenas o material que os pacientes produzem, verá que eles entrarão forçosamente em suas reminiscências, costumes e maneiras infantis e que projetarão especialmente as imagens dos pais. Se houver uma transferência, o senhor ficará envolvido e integrado na atmosfera familiar do paciente. [...] Quando deixamos que o inconsciente siga o seu caminho natural, então podemos estar certos de que virá à tona tudo o que o paciente precisa saber; também podemos estar certos de que tudo o que tiramos do paciente por insistência em bases teóricas não será integrado na personalidade do paciente, ao menos não como valor positivo, mas no máximo como resistência duradoura. Nunca lhe ocorreu que em minha análise pouco se fala de "resistência" [...]?