sábado, 1 de novembro de 2014

A questão da interpretação das imagens na psicologia junguiana - Luís Paulo B. Lopes


Texto de Luís Paulo B. Lopes

As imagens têm importância central para a psicologia junguiana, seriam elas a linguagem que a alma se utiliza para falar de si própria. Jung dá grande importância aos mitos, contos de fada, sonhos e fantasias, por considerar que estas imagens trazem consigo elementos arquetípicos que constituem os fundamentos da alma. James Hillman também nos fala da importância da utilização de imagens metafóricas para pensarmos a alma, pois segundo afirma, os conceitos psicológicos tendem, devido à própria natureza unilateral da linguagem conceitual, a literalizar teorias e engessar nosso entendimento sobre nós mesmos. Jung sempre salientou este risco quando repetidas vezes alertou para a tendência a hipostasiarmos teorias, isto é, a confundirmos nossos conceitos sobre a alma com a alma em si mesma. Para Hillman, é a linguagem metafórica que nos previne de confundir o mapa com o território, pois a ambiguidade implícita da metáfora impede a unilateralidade conceitual e a consequente literalização. 

Hillman considera a metáfora como a coniunctio falada, isto é, engloba os opostos em uma unidade paradoxal. Este pensamento está de acordo com o que pensava Jung quando afirmava que o símbolo é a união dos opostos, isto é, irremediavelmente ambíguo, e que a postura simbólica é o que permite a abertura do indivíduo ao mistério no trato com a imagem. Ao contrário da postura simbólica, a postura semiótica, segundo Jung seria responsável por definir correspondências estáticas entre imagens e significados definidos, algo extremamente semelhante ao problema da literalização proposto por Hillman. O cuidado em discernir postura simbólica de postura semiótica, por Jung, nos adverte de que mesmo quando utilizamos uma linguagem imagética, não estamos necessariamente trabalhando de maneira simbólica. E que nossa postura diante das imagens é de fundamental importância para que mantenhamos a ambiguidade do símbolo viva, e assim a possibilidade de abertura para o desconhecido. 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Saci Pererê nas regiões do Brasil do Século XIX - João Barbosa Rodrigues

Em homenagem ao dia do Saci (31 de outubro) trago esta obra prima de João Barbosa Rodrigues contando sobre o Saci do século XIX de Norte à Sul do país. O autor descreve as diferenças  regionais desta personagem mítica tão presente no imaginário nacional. Este texto constitui joia raríssima para o estudo da alma brasileira.

Texto retirado do livro Poranduba amazonense de João Barbosa Rodrigues. Este livro foi publicado em 1890. Nesta época, as regras ortográficas da língua portuguesa eram diferentes das atuais. Tomei a liberdade de corrigir palavras do texto original para o português contemporâneo. Além disso, acrescentei entre colchetes, significados de algumas palavras pouco utilizadas na atualidade, que são restritas à regiões específicas do país ou que estão no idioma Tupi. 


O civilizado, que muitas vezes não entende a pronúncia do sertanejo, que é o mais perseguido por ele [pelo Saci] em suas viagens, tem-lhe alterado o nome; já o fez Çacy-pererê. Saperê, Sererê, Sareré, Siriri, Matim-taperê, e até já lhe deu um nome português, o de Matinta-Pereira, que mais tarde talvez, terá o sobrenome da Silva ou da Matta.

Para conseguir seus fins, e fazer suas proezas, sem ser visto, quase sempre vive o Çacy [Saci] ou Maty metamorfoseado em pássaro, que se denuncia pelo canto, cujas notas melancólicas, ora graves ora agudas, iludem o caminhante que não pode assim descobrir-lhe o pouso, porque, quando procura vê-lo pelas notas graves, que parecem indicar-lhe estar o Çacy [Saci] perto, ouve as agudas, que o fazem já longe. E assim iludido pelo canto se perde, leva descaminho nunca vendo o animal.

Quando no Norte, os tapuyos, ouvem o canto de Maty-taperê, e no Sul, os roceiros ou os Kaipiras, o do Kaapora ou do Çacy-taperê; que o civilizado toma por Alma de caboclo, os velhos o esconjuram [lhe rogam pragas]; as crianças unidas conchegam-se ao colo das mães; estas, arrepiadas, olham para os pais, que tremem, mas não negam o fumo que espalham pelas cercas dos quintaes e pelas portas para que o Çacy [Saci] se cale, e se retire, levando com que matar o vício de cachimbar.

Quando não se apresenta aos viandantes sob a forma de pássaro, reveste-se da forma humana, e só (no Sul) ou acompanhado de sua mãe (Pará e Maranhão) percorre as ruas, entra pelos roçados, vai às casas de farinha; penetra nas senzalas; aterroriza os passageiros; rouba a mandioca; furta farinha e quebra os bejus no forno, proezas em que é destro no Rio de Janeiro.

No Amazonas e Pará é um kurumi [curumim] de uma perna só, de cabelos vermelhos, os quais a civilização transformou em barrete [tipo de chapéu] vermelho (Pará) sempre acompanhado de uma velha tapuya [índios que não falam o idioma Tupi. Em Tupi significa "inimigo", "forasteiro"] ou preta (tatámanha [mãe de fogo em Tupi]) vestida em andrajos que pela calada da noite, e mesmo de dia assovia dizendo: Maty-taperê!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A psicologia junguiana e o resgate da alma brasileira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A alma brasileira não pode ser adequadamente circunscrita de forma exclusiva pela mitologia grega e pelo mito judaico-cristão. Somos um povo miscigenado, com fortes influências da cultura africana e indígena. Nossa cultura foi formada, literalmente pelo choque entre essas culturas. Apesar de nossa riqueza étnica e cultural, a história de dominação da cultura europeia tendeu a excluir nossas influências africanas e indígenas do debate acadêmico. Historicamente, os mitos, ritos e costumes destas culturas foram estudados por nossos etnólogos e antropólogos como culturas exóticas, mas somente raramente como constituintes fundamentais de nossa cultura, sempre presentes no aqui e agora. A psicologia junguiana no nacional tendeu, ao longo dos poucos anos em que floresceu no Brasil, a reproduzir as mesmas temáticas abordadas pelo pensamento europeu. Do ponto de vista arquetípico, as produções acadêmicas nacionais tendem a utilizar majoritariamente a mitologia grega e o mito judaico-cristão em suas amplificações. Não quero dizer que estes mitos não exerçam grande importância em nossa constituição cultural e psíquica, mas por outro lado é importante assumir que abordar cultura tão rica e complexa como a brasileira a partir desta perspectiva unilateral significa ignorar ampla parcela de nossa cultura; é ignorar ampla parcela de nossa alma. 

Somente recentemente a psicologia junguiana brasileira parece ter se ocupado de forma séria com a constituição complexa de nossa cultura, levando em conta as diversas influências étnicas e culturais que nos constituem enquanto brasileiros. Um exemplo do esforço nacional pelo resgate da alma brasileira foi materializado no primeiro volume da coleção “alma brasileira” publicado em 2014 pelas editoras Mauad X e Bapera. Esta coleção foi idealizada e planejada, segundo Oliveira (2014), a partir do “Colóquio: Psicomitologia Junguiana e Mitos Brasileiros” em novembro de 2011. O objetivo da coleção é introduzir de forma definitiva os mitos constituintes de nossa cultura, ainda vivos no imaginário brasileiro, no estudo de nossa alma sob a perspectiva da psicologia junguiana. Leonardo Boff em seu prefácio para o primeiro volume desta coleção, nos fala sobre a importância desta empreitada. Afirma ele que “diversa é a composição étnica, diferentes são as regiões geográficas do país e vigora um rico sincretismo em curso que, seguramente, vai moldar toda a cultura brasileira futura. É o que faz o Brasil complexo e desafiador” (BOFF in OLIVEIRA, p. 7, 2014). Este desafio a que se refere é fundamental para a compreensão e o resgate de nossa identidade cultural, que há séculos sofre de um abafamento dominador da cultura europeia e tende a desqualificar e excluir a África e a América pré-colombiana de sua reflexão sobre si própria. Resgatar nossas raízes enquanto cultura, isto é, aqueles nossos aspectos que foram negligenciados, equivale a reconstruir nosso futuro; reconstruir nossa identidade cultural. Ainda segundo Boff, “uma nação revela já maturidade quando começa a pensar a si mesma com um olhar próprio, mesmo quando se serve de um arsenal teórico vindo de fora mas filtrado pela nossa singularidade como povo” (Ibid: 7). Me parece que não só a psicologia junguiana brasileira, mas nossa sociedade de forma mais ampla, começa a atingir tal grau de maturidade que permite pensar sobre si mesma a partir da própria singularidade enquanto povo. Faz-se necessário que a psicologia analítica, sem negligenciar suas raízes europeias, comece também a valorizar a totalidade da cultura brasileira a fim de se aproximar de um entendimento mais original e radical sobre a alma brasileira; e consequentemente ajude na construção de uma identidade cultural fundamentada em suas próprias raízes, em sua totalidade. 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Entrevista de Joseph Campbell à Revista The New Story (1985)


A presente entrevista foi retirada de um blog na internet (link no final desta postagem). Foi traduzido e editado pelos responsáveis pelo blog.

"Muitos de vocês já devem conhecer a célebre entrevista de Joseph Campbell para Bill Moyers em O Poder do Mito, não é mesmo? Pois bem, aqui lhes trago uma outra entrevista, concedida a Tom Collins e publicada na revista The New Storyem 1985, nos EUA. Se trata, é claro, de um entrevista muito mais curta do que a citada acima, mas exatamente por isso acaba sendo um excelente resumo do pensamento de Campbell acerca da mitologia, das religiões, dos rituais e dos rumos da sociedade moderna, em sua trágica carência de mitos"

A entrevista foi traduzida do inglês por Gabriel Fernandes Bonfim, revisada por Rafael Arrais.

Joseph Campbell talvez seja o acadêmico mais proeminente no estudo da mitologia. Entre os seus diversos livros podemos destacar O herói de mil faces, As máscaras de Deus (série) e o célebre O poder do mito. O entrevistador, Tom Collins, é um escritor e editor de Los Angeles, que já trabalhou com Steven Spielberg.


1. A importância dos mitos

[Tom] O que os mitos fazem por nós? Por que a mitologia é tão importante?

[Joseph] Ela lhe põe em contato com um plano de referência que vai além da sua mente e adentra profundamente o seu próprio ser, até as vísceras. O mistério definitivo do ser e do não ser transcende todas as categorias de pensamento e conhecimento. Ainda assim, isto que transcende toda a linguagem é a própria essência do seu ser; então você está descansando sobre ela, e sabe disso.

A função dos símbolos da mitologia é nos levar a uma espécie de insight, “Aha! Sim, eu sei o que é isto, isto sou eu mesmo”. É disto que se trata a mitologia, e através dessa vivência você se sente em contato com o centro do seu próprio ser, cada vez mais, e todo o tempo. E tudo o que você faz dali em diante pode ser relacionado com tal grau de verdade. No entanto, falar sobre isso como “a verdade” por ser um pouco enganoso, pois quando pensamos na “verdade”, pensamos em algo que pode ser conceitualizado. E tal vivência vai além disso.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O Filemôn de C. G. Jung e o Avôhai de Zé Ramalho - D. Júnior Viana Costa


Texto de D. Júnior Viana Costa. Email para contato: juniorvianac@oi.com.br


Carl Gustav Jung (1875 – 1961), o mais famoso discípulo dissidente de Sigmund Freud, afastando-se do último por divergências pessoais e teóricas em relação ao campo da Psicanálise, defende a tese de que nossa psique é constituída de uma camada inconsciente mais profunda do que o inconsciente pessoal proposto por Freud, o que Jung veio a denominar de Inconsciente Coletivo ou Inconsciente Supra-pessoal. Embora Freud tenha em certo momento discorrido sobre os “resíduos arcaicos” e “padrões filogenéticos”, como nos lembra Jung no “O Homem e seus símbolos”, Freud não desenvolveu nenhum conceito específico sobre o tema. Jung afirma que a psicanálise, enquanto teoria psicológica, se restringe a uma única representação arquetípica, o Complexo de Édipo.

Para Jung, “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são 'cum grano salis' os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos.”

É necessário observar que tal “conhecimento inato” e tais “experiências” são armazenadas de modo peculiar no inconsciente coletivo, e não em forma de “dados diretamente copiados”, como poderia parecer à primeira vista. Se apresentam em modelos típicos de comportamento e de percepção, motivos mitológicos, religiosos etc. As unidades do inconsciente coletivo são os arquétipos, modelos estruturais do aparelho psíquico. A hipótese da existência de um Inconsciente Coletivo permeia campos diversos, como a psicologia, ciências humanas - como a antropologia e as ciências da religião - e mesmo a biologia.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A psicologia analítica de Carl G. Jung: uma teoria anacrônica ou atual? - D. Júnior Viana Costa

Texto de D. Júnior Viana Costa. Email para contato: juniorvianac@oi.com.br

O texto abaixo surgiu da necessidade de sustentar determinadas posições pessoais quanto ao universo teórico e prático da Psicologia Analítica. Não pretende ser elaborado em formato acadêmico ou ser minha palavra final sobre o tema. As referências ao final servem apenas como orientação. Permaneço inteiramente aberto às discussões. Trata-se de um texto informal que visa somente esclarecer a política assumida, principalmente na minha página Carl Jung Sincero, que tem sido alvo de diversas críticas por parte de alguns junguianos. Admite algumas lacunas que poderiam ser melhores trabalhadas. As críticas são bem vindas desde que compreendam bem a posição de onde emito meu discurso. Considero útil a leitura do texto como forma de se saber o que move meu trabalho na referida página. Peço desculpas pelos eventuais erros de digitação ou de português que possam encontrar. Obrigado. 

Revisão de texto: JD Lucas 



A psicologia analítica de Carl G. Jung: uma teoria anacrônica ou atual? 

D. Júnior Viana Costa 

As mudanças pelas quais o mundo, sobretudo o ocidental, passou nos dois últimos séculos abalaram profundamente os pilares fundamentais da vida humana. Quase todos os campos da experiência humana sofreram grandes metamorfoses e levantaram novas questões quanto ao papel do homem na sua relação com o mundo, consigo próprio e com a sociedade. Religião, tradição moral, ciência, ética, espiritualidade, diplomacia, mundo do trabalho, sexualidade etc, todos os campos foram abalados e se viram forçados a rediscutir suas bases. O historiador egípcio Eric Hobsbawm (1917-2012), definiu o século XX como o Breve século, a Era dos Extremos, que teve início em 1914 com a Primeira Guerra (cem anos atrás) e fim no ano de 1991, com a queda do muro assinalando o fim da antiga União Soviética. A Guerra Fria pode ser tomada como uma metáfora que reflete certa dissociação psíquica no campo da política. De um lado, os ideais de comunidade, de outro a supervalorização do individualismo. 

Carl Jung nasceu em 1875 e veio a falecer em 1961. Presenciou as principais mudanças pelas quais o mundo passava, e, de certa forma, antecipou algumas das possíveis conseqüências de tais mudanças, sobretudo no que diz respeito ao uso unilateral da razão e seu prejuízo para psique coletiva, o que ainda compõe o paradigma científico de nossa época e fornece alguns dados para o entendimento do que seja o espírito de nosso tempo, embora o mesmo venha sendo questionado continuamente sobre sua legitimidade. A obra de Jung reflete o momento de transição entre um determinado modelo social e o surgimento de um novo modelo. A razão, elevada ao posto de deusa pela tradição burguesa iluminista, passou a gozar de onipotência e prestígio, incidindo diretamente na forma como a qual a sociedade se articula e se organiza: na produção em escala global, na filosofia individualista e no consumo de bens e serviços. O sentido da vida vai passando progressivamente do ser para o ter. Tenho, logo existo. 

A ideologia mercantil coloca como centro da existência o sujeito produtivo, consumidor, autônomo, racional, disciplinado, o que constitui um caráter externo e propagandista para que seus objetivos de mercado sejam alcançados. Surge o culto da individualidade, da subjetividade, da autonomia de ação, entre outros ideais. Mas, na mesma medida, por outro lado, há o esfacelamento do indivíduo real enquanto tal, substituindo-o por uma abstração ideológica que, na prática, só reflete o eclipse do sujeito e sua profunda alienação em relação ao social e, sobretudo, em relação a si mesmo (daí Jung defender tão enfaticamente a importância do autoconhecimento em nossos dias). Segundo Bauman, nossa situação atual é dada da seguinte forma: "A viagem nunca termina, o itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é sempre desconhecido." O foco atual ainda é colocado no individual, mas não no singular, o que é verdadeiramente próprio de cada um, e é o que defende Jung. 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A sombra coletiva e os linchamentos no Brasil do século XXI - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Não há consenso sobre a etimologia da palavra linchamento, embora seja provável que tenha se originado a partir do comitê para manutenção da ordem do Capitão William Lynch na revolução dos Estados Unidos. Entretanto, a prática de linchamento nos Estados Unidos foi largamente utilizada no período pós-revolução, não para manter a ordem pública, mas para perseguir e assassinar minorias étnicas, como negros e indígenas, por exemplo; e acabou originando grupos racistas violentos como o Ku Klux Klan. Embora a origem da palavra linchamento seja relativamente recente na história, a prática de capturar “criminosos”, ou qualquer “desgraçado” que receba projeções da sombra coletiva, e realizar execuções públicas (com ou sem julgamento), e muitas vezes realizadas pelos próprios cidadãos, é bastante remota. Na antiguidade, era comum a prática da lapidação, apedrejamentos públicos realizados após condenação oficial. A lei mosaica, isto é, atribuída à Moisés, herói Judeu que miticamente introduziu o povo de Israel na Palestina, prevê a morte por apedrejamento em dezoito situações diferentes; como em casos de incesto, idolatria, blasfêmia, bruxaria e até rebeldia de filhos considerados irrecuperáveis pela família. Tal prática ainda hoje persiste de forma institucionalizada em alguns países muçulmanos. 

As execuções públicas na Europa medieval (e mesmo na revolução francesa) tinham um componente bastante semelhante ao linchamento, pois se por um lado os enforcamentos e decapitações serviam de aviso para o resto da população não cometer os mesmos crimes, por outro lado, o escárnio público em relação aos executados transformava-os em bodes expiatórios para a sombra coletiva. O cidadão humilhado publicamente enquanto caminha em direção à execução no centro de uma praça recebe projeções da sombra de seu tempo e de sua cultura, e por esse motivo, o escárnio vai muito além do crime cometido. As reações dos “cidadãos de bem” são desproporcionais por haver uma situação arquetípica constelada; o cordeiro, ou melhor, o bode deve ser ritualisticamente sacrificado para expiar o pecado coletivo do espírito do tempo, que penetra cada individualidade isoladamente e, assim, convoca cada um à responsabilidade. No entanto, a imolação expiatória da sombra coletiva acaba prevenindo que cada cidadão individualmente assuma a própria responsabilidade em relação à redenção do Diabo. Quer dizer, na medida em que a sombra coletiva é projetada no bode expiatório, e este é ritualisticamente sacrificado em um frenesi arquetípico, o reconhecimento e a integração da própria sombra se tornam dispensáveis. Daí podermos concluir que os linchamentos se caracterizam por uma tentativa malograda de integração da sombra coletiva. Tal tentativa de integração, invariavelmente, não obterá sucesso algum, pois enquanto a sombra estiver projetada, jamais poderá ser integrada; e permanecerá somente como encenação mítica. Além disso, cabe aqui ressaltar a importância do indivíduo, tantas vezes observada por Jung, na transformação da cultura; pois a sombra coletiva atravessa cada individualidade isoladamente e convoca todos a darem uma resposta aos problemas de seu tempo. Por esse motivo cada indivíduo é, ele mesmo, o cordeiro a ser imolado para a expiação dos pecados do mundo. Deste modo, a integração da sombra coletiva se dá através de contínuas autoimolações expiatórias, isto é, do reconhecimento e integração da sombra individual, que sempre traz implícita a sombra coletiva. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A individuação no atual contexto cultural - Luís Paulo B. Lopes

Há entre os junguianos a idéia de que a possibilidade da individuação ocorre no que Jung chamou de metanóia (reorientação), a virada entre a primeira e a segunda metade da vida. A individuação, portanto, seria uma tarefa para a segunda metade da vida; enquanto que na primeira metade teríamos como destino a necessidade de adaptação ao mundo exterior. Isto nunca me soou adequado, pois o jovem está, em muitos casos, bastante envolvido com questões que vão muito além do problema da adaptação ao mundo. É verdade que em alguns casos é adequado relacionarmos determinados processos psíquicos com a idade cronológica, como por exemplo, o desenvolvimento do ego, da primeira infância até a adolescência. Isto de fato parece ser um processo arquetipicamente determinado para ocorrer em períodos cronológicos mais ou menos definidos; pois o vemos se repetir sempre e de novo. É verdade também que o jovem é confrontado com o problema da adaptação ao mundo de forma bastante urgente, pois nascemos em um mundo que já é dado, em uma cultura particular, inseridos em determinada sociedade e em um ambiente familiar definido. O jovem, sem dúvida nenhuma terá que dar conta de se adaptar a este mundo.

No entanto, o homem mais velho também continua a ser confrontado com a questão da adaptação ao mundo. Principalmente em nosso tempo em que as mudanças são extremamente rápidas; e não somente no que diz respeito ao surgimento avassalador de novas tecnologias, mas também de novas formas de se relacionar e da afirmação de uma diversidade cada vez maior que antes era silenciada e excluída pela tradição; sem falar na degeneração da própria tradição. Em nosso tempo tudo muda, e rápido; o que era aceitável há uma década é considerado desprezível atualmente. A necessidade de adaptação ao mundo estará sempre colocada ao indivíduo, independente do período cronológico de sua vida. Considerar que nos adaptamos ao mundo na primeira metade da vida para depois sermos confrontados com o problema do significado, como se aquela primeira fase já estivesse superada, é não conseguir olhar para o agora. 

Individuação somente na segunda metade da vida? - J. Hillman


Texto retirado do livro "O livro do Puer" de James Hillman.

A psique parece ter seu próprio curso, seu próprio tempo. O senex, assim como o puer, pode aparecer em muitos estágios e fases e influenciar qualquer complexo. O padrão de qualquer vida dividida numa moldura ideal de dois, três, sete ou dez estágios da infância à senilidade parece confirmar a regra da entropia. A vitalidade dada no nascimento diferencia-se, esmorece e finalmente se apaga na morte. Mas a vida psíquica num indivíduo também mostra negentropia, na qual, à medida que ela se torna mais ordenada e menos aleatória, torna-se também mais imprevisível e improvável. Em outros termos, essa negentropia poderia ser chamada liberdade. portanto não podemos encaixar a vida psicológica nas condições históricas ou nas estreitas molduras biológicas de "primeira-metade/segunda-metade". Fazê-lo significaria a indicação inicial de que nós mesmos sucumbimos facilmente ao pensamento enganoso do arquétipo da divisão. 

Cura da memória e redenção do tempo - J. Hillman

Texto retirado do livro "O livro do Puer" de James Hillman.

A função específica da psique, a subjetividade que experimenta e grava padronizando as experiências historicamente, que torna a história possível e é seu a priori, foi chamada de Clio. E Clio, como a primeira filha, tem relação especial com a mãe das musas, a lembrança. [...] O nome Clio significa glória, honra, celebração e é ela quem melhor lembra as ações dos heróis. Seu interesse não está nas notícias diárias da história de caso do mundo, ou aquilo que Mircea Eliade chamou de "tempo profano". Em vez disso seu interesse está naqueles momentos nucleares únicos, momentos heróicos através dos quais o arquétipo no centro da alma é revelado redimindo eventos da cegueira dos meros fatos. Assim como nós, indivíduos, estamos atados aos fatos e nossas histórias de caso pessoais por aquilo que lembramos de nossas vidas pessoais, também nossa cultura está viciada na história do tempo profano. Um vício exige cada vez mais, cada vez mais rápido. Muito de nossa inventividade serve meramente para fazer, reunir e reproduzir eventos. [...] Precisamos de mais "informação", temos menos tempo a perder. Alcançamos até uma "história instantânea", que Arthur Schlesinger defende chamando "História Contemporânea", onde tudo aquilo que acontece a todos no cenário público deve ser registrado e aquilo que é registrado deve ser publicado - e rápido. As profanas chroniques scandaleuses - as "profanidades" - dos heróis substituem a glória de Clio.

Na prática analítica aprendemos que uma compreensão arquetípica dos eventos pode curar a fascinação compulsiva com nossa história de caso. Os fatos não mudam, mas sua ordem recebe outra dimensão através de outro mito. Eles são experimentados diferentemente; ganham outro sentido porque são contados através de outro conto. [...] Portanto, a redenção do vício na história profana pode vir da mesma forma. Essa forma demonstraria outra organização arquetípica dos eventos pelos quais sofremos. Porém essa reorganização requer primeiro a mudança na própria memória, de maneira que a cada dia perguntemos não "o que aconteceu?", mas "o que aconteceu para a alma?". Para essa maneira de lembrar os eventos, a memória necessitaria retornar à sua reminiscência de idéias primordiais, à sua associação primordial com as raízes metafóricas da experiência humana. A memória assim transformada registraria primeiro as experiências da alma e apenas secundariamente os acidentes dos eventos. Ou, melhor dizendo, poderia tomar os eventos psicologicamente, ritualmente, não mais apenas sua vítima. Através dessa cura da memória, a própria Clio poderia ser libertada de sua fascinação com a história de caso do mundo e assim ser restaurada ao seu papel de registradora e celebrante daquilo que tem significado. [...]