domingo, 2 de fevereiro de 2014

Outras vidas, outros eus - Roger Woolger

Texto retirado do livro "As várias vidas da alma" de Roger Woolger.

Embora o termo "complexo" tenha se estabelecido há décadas no jargão da psicologia popular, a maioria das pessoas tende a resistir à ideia de que a personalidade é múltipla. Isto pode ser compreensível à luz de histórias impressionantes como The three faces of eva [As três faces de eva] ou filmes hollywoodianos sensacionalistas, como The Exorcist [O Exorcista] ou The Entity [A Entidade]. Nossa resistência à ideia também se deve ao fato de a expressão "personalidade múltipla" ter sido usada quase que exclusivamente como um rótulo clínico para designar um estado de grave dissociação ou divisão da personalidade que beira a loucura.

A esquizofrenia, embora erroneamente confundida com uma divisão ou perturbação da personalidade múltipla, é uma doença onde muitas vozes ou eu imaginários procuram influenciar ou minar a sensação de um paciente ter uma personalidade integrada, uma identidade do ego. (Na verdade, a principal diferença, falando em termos clínicos, entre a esquizofrenia e a personalidade múltipla é que, neste último caso, as diversas formas da personalidade estão rigorosamente compartimentalizadas, cada qual ignorando a outra. Um esquizofrênica, ao contrário, é plena e devastadoramente cônscio, a maior parte do tempo, de que tem muitas vozes ou eus dentro de si, mas não controla nenhum deles.)


Mas, independentemente do tipo de perturbação mental a que nos referimos, o termo "múltiplo" contém associações atemorizantes quando comparado a "complexo", uma palavra mais benigna. Assim, embora possamos sentir-nos perfeitamente à vontade para falar num coquetel com um estranho sobre nosso "complexo de dinheiro", por exemplo, a maioria das pessoas pensaria duas vezes antes de dizer: "Estou preocupado com dinheiro: o monge dentro de mim continua insistindo para eu fazer voto de pobreza!"

O trabalho com figuras internas, mesmo quando identificamos suas origens, é um desafio. Precisamos saber exatamente como seus pensamentos, sentimentos e histórias influenciam inconscientemente nossos pensamentos, sentimentos e comportamento na vida cotidiana, e então procurar alterar esta influência. 

Na verdade, não é tão difícil quanto pensamos identificar um ou outro dos muitos eus, agradáveis ou repugnantes, que flutuam nas asas de nosso palco psíquico interior. De vez em quando um deles consegue eclipsar o ator principal, nosso ego, e roubar a cena. "Eu estava fora de mim", dizemos depois, ou, "Não sei o que deu em mim", ou "Estas palavras simplesmente saíram da minha boca". Neste instante fugaz, testemunhamos, embora de maneira um pouco confusa, um outro eu cutucar o eu do ego para lhe chamar a atenção. Alguns de nós ouvem estes outros eus buzinando constantemente em sua orelha. Mas é um erro pensar, como sustentam certas psicologias populares, que estas são apenas as vozes dos pais, que internalizamos na infância. Alguns dos personagens que lutam pela proeminência frustrariam as belas expectativas de nossos pais!

identificar esses personagens internos provoca, obviamente, muito constrangimento e resistência em nós. Uma parte do medo de não mandarmos na nossa própria casa é a compreensão de que admitir todo um elenco de personagens acotovelando-se e lutando para chegar ao centro do palco nos coloca no mesmo continuum que inclui efetivamente a esquizofrenia e a personalidade múltipla.

Todavia, ninguém diz que devemos ceder às exigências persistentes e obsessivas de nossos outros eus. Nossa primeira tarefa é reconhecê-los; a segunda é fazer um acordo com eles, como um rei que precisa pacificar e ouvir seriamente os vassalos rebeldes que negligenciou com indiferença. Ao passo que mais repressão só cria inimigos ainda piores, uma negociação compreensiva pode restaurar a força e a harmonia dentro do reino, se for feita de maneira adequada. 

Um comentário:

Folhas soltas disse...

OLÁ! Queria lhe agradecer o artigo esclarcedor, me ajudou muito. Descobri que não sou uma aberração, tenho tantos dentro de mim que até perco a conta...rs. Muito obrigada, de coração.
Um abraço ad infinitum....
Namastê.
Ana Júlia