segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Vicissitudes dos rituais enteogênicos coletivos contemporâneos - Luis Paulo Lopes



Vicissitudes dos rituais enteogênicos coletivos contemporâneos. 


Luis Paulo B. Lopes

Rituais onde utilizam-se enteógenos, sejam de origem animal ou vegetal, são práticas milenares. Há registros de tais rituais nas mais diversas culturas ao redor do mundo. Para compreender aspectos psicológicos, sociais e espirituais envolvidos nos rituais de tais culturas, seria necessário um olhar tendo a própria cultura em questão como referência, para que não se chegue em conclusões de cunho etnocêntrico. Certamente não é de minha competência empreender tal reflexão, portanto ocupo-me com aquilo que faz parte de minha experiência, os rituais coletivos contemporâneos. É importante considerar que o ritual coletivo envolve uma série de aspectos importantes implicados no desenvolvimento espiritual dos indivíduos que deles participam. No entanto, meu objetivo nesse momento é refletir sobre algumas vicissitudes que podem estar envolvidas nessas situações. Afim de que essas reflexões possam ser úteis, de alguma forma, para as próprias instituições que regem os rituais e seus participantes. Tenho consciência de que não serei capaz de abarcar a totalidade de possibilidades envolvidas em tais situações. Mas considero válida a tentativa presente de enumerar alguns pontos envolvidos na situação paradoxal em que uma experiência potencialmente integradora pode também se tornar um entrave no processo de individuação, seja por questões que envolvem o coletivo, seja por questões que envolvem o indivíduo. As questões que apresentarei são fenômenos humanos, e é natural que se manifestem também nos grupos que utilizam enteógenos em seus rituais. Portanto, não tenho como objetivo apontar defeitos ou falhas, mas apenas refletir sobre essas questões.

Certamente a experiência enteogênica tem um grande potencial transformador, na medida em que o indivíduo conscientiza-se, através da experiência, de aspectos de si próprio que antes estavam obscurecidos. Além disso, é interessante ressaltar que o entendimento geralmente existente nos grupos onde são realizados rituais, de que os aspectos transpessoais manifestados no indivíduo são de origem sagrada, é um importante fator facilitador da individuação. Nas palavras de E. F. Edinger:


"O uso errôneo do segredo, sugere uma inflação subsequente à identificação do ego com a imagem arquetípica. Se não forem percebidas como um segredo e como algo sagrado, as energias transpessoais serão canalizadas para fins pessoais e apresentarão efeitos destrutivos". [1]

Entretanto, o entendimento de que esses aspectos transpessoais tem sua origem no sagrado, mesmo que seja oriundo de uma experiência transpessoal ao invés de uma abstração racional ou de uma crença sem referência experiencial, ainda assim não exclui a possibilidade de inflação, onde o indivíduo rouba os poderes dos deuses em uma identificação do eu com imagens arquetípicas. A inflação não é algo necessariamente ruim, é até mesmo importante em alguns momentos para o próprio processo de individuação, entretanto há uma contrapartida em que, ao se revestir de qualidades divinas, o eu assume uma postura enrijecida que pode ter efeitos destrutivos.

"Quando olhamos retrospectivamente nossa origem psicológica, vemos que ela tem uma dupla-conotação: em primeiro lugar, ela é vista como condição paradisíaca, unidade, um estado de unicidade em relação à natureza e aos deuses e infinitamente desejável; mas, em segundo lugar, com base nos nossos padrões humanos conscientes, que estão relacionados à realidade do tempo e do espaço, trata-se de um estado de inflação, uma condição de irresponsabilidade, de luxúria incorrigível, de arrogância e de desejo rude". [2]

É natural esperar posturas infladas nos grupos que utilizam enteógenos em seus rituais, assim como em qualquer ser humano. Entretanto, a determinação moral de aspectos considerados pelo grupo como comportamento espiritual ideal, favorece uma espécie de inflação coletiva. Dessa forma, inicia-se uma busca individual por corresponder às expectativas morais do grupo, expressa no desejo de possuir imediatamente as virtudes consideradas mais elevadas, dando a possibilidade do indivíduo elevar-se da condição de simples mortal para portador das mais nobres virtudes espirituais. Fato que pode gerar uma onda de arrogância ou vaidade exacerbada. Chogyam Trungpa, grande mestre budista, comenta essa questão:

"Existem numerosos desvios que levam a uma distorção egocentrada da espiritualidade; podemos iludir-nos imaginando que estamos nos desenvolvendo espiritualmente quando, na verdade, não fazemos senão fortalecer nosso egocentrismo por meio de técnicas espirituais. A essa distorção básica pode dar-se o nome de materialismo espiritual". [3]

Como consequência disso, o processo de individuação, onde num primeiro momento o indivíduo conscientiza-se de potencialidades presentes em sua sombra, pode sofrer um impedimento quando o aspecto sombrio que necessita de integração não corresponde com a determinação moral do grupo. Segundo Jung, “a consciência é um processo momentâneo de adaptação”, seu direcionamento unilateral tem grande importância na medida em que “pressupõe persistência, regularidade e intencionalidade”; e torna possível o desenvolvimento da própria civilização. Entretanto, há uma contrapartida, já que “o fato de serem dirigidas para um fim encerra a inibição e ou o bloqueio de todos os elementos psíquicos que parecem ser, ou realmente são, incompatíveis com ele”. [4]

Quanto mais rígida for a moral do grupo, mesmo que essa se refira a posturas consideradas elevadas espiritualmente, maior será o direcionamento da consciência no sentido de se adaptar a essa moral. Como consequência disso, os aspectos incompatíveis, fatalmente, serão obscurecidos na sombra, constituindo assim potencialidades que posteriormente deverão ser conscientizadas e reintegradas para o pleno desenvolvimento psíquico do indivíduo. Contudo, a experiência enteogênica é capaz de fazer com que o indivíduo conscientize-se desses aspectos sombrios, fato que pode fazer com que mergulhe em um conflito penoso, quando precisa “se tornar” (integrar) aquilo que a moral do grupo condena. O processo de individuação pode indicar, em alguns casos, a necessidade de rompimento com o coletivo para que o indivíduo possa desenvolver-se plenamente de acordo com seu fluxo subjetivo. Em outros casos, o indivíduo pode ser capaz de reintegrar tais aspectos sem um rompimento, mas à partir de um novo olhar sobre o grupo.

As situações acima referidas podem ser consideradas tanto como entraves ao processo de individuação, quanto como pedras necessárias no caminho do viajante. O que em um primeiro momento pode parecer estar cristalizando o desenvolvimento do individuo, em um segundo momento pode mostrar-se como etapa fundamental de seu desenvolvimento. Espero portanto que esse texto sirva para que possamos refletir sobra nossa própria postura, afim de que possamos caminhar no caminho que nos é revelado, seja ele na presença de um grupo ou não.

[1] EDINGER E.F. Anatomia da psique. O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 2006. Pág. 28 .
[2] EDINGER E.F. Ego e Arquétipo. São Paulo: Cultrix, 1972. Pág.32.
[3] TRUNGPA C. Além do materialismo espiritual. São Paulo: Cultrix 1973. Pág. 9.
[4] JUNG C.G. A natureza da psique. 6 edição. Petrópolis: Vozes. Pág 2. 

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